A cólera-morbus que em 1856, reinando D. Pedro V, se desenvolveu com o máximo de intensidade na cidade de Lisboa e grande parte do reino, assolou também, segundo rezam as memorias, a vasta região da beira-mar compreendida entre Viana e Figueira. Assim, a nossa terra não escapou ao terrível flagelo que dizimou centos de criaturas, espalhando o terror e um desanimo profundo na alma forte dos Ílhavos de então. Calamidade sobre calamidade, a fome nesse ano redobrou à aflição e a angustia das gentes ribeirinhas, recozendo-lhes uns abafados suspiros de desalentada esperança. Eram como montanhas a sofrer o abalo lento de encarniçados dos séculos, como um fervilhar de ignescênte massa entre-chocada no paredão impotente da Terra. Era uma luta homérica de estranhos seres. Os barcos-do-mar, como gigantes esfaimados, abriam ao sol rutilo de Junho as fendas escuras dos seus costados e, de proas no ar, semelhavam braços implorando a misericórdia divina! Imobilizaram-se: porque os braços fortes dos Ílhavos pendiam estirados nos rebordos denegridos dos caixões. Os que não eram do mar lutavam também como hércules, mas, por fim, cediam, estrebuchando em tortores de aflitiva morte. Era o mês alegre das lides das sachas do milho e da ceifa dos fenos. As gargantas dos moribundos gosmavam-se em vômitos esverdeados de nauseante cheiro e anacatarseavam uns escarros dum amarelo bem acentuado que a heroica e magnânima Leocadia Ferraz ia repuxando com sucessivas abluções de água a ferver ao peito já em ferida dos atacados. Na casa que mais tarde devia ser do senhor Cartaxo, na rua Direita, improvisou-se um pequeno e humilde hospital, onde baixavam os desgraçados pestilentos sem família. Foi ali que se mitigou muita dor, que muitos doentes morreram ouvindo palavras de esperança e de sentido carinho.
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Cemitério de Ílhavo, c.1895
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... Noite alta, ais e roncos de desespero perdiam-se também por entre as sombrias vielas dos palheiros na Costa Nova. Um silêncio de morte dominava ás vezes. Na escuridão tenteavam vultos, e lá de vez em quando, lobrigavam-se bateiras transportando para o outro lado as vitimas daquele flagelo, e iam aos montes, sobrepostos, empilhados. Para a remada ser mais forte, os pescadores vagueiros firmavam os pés no ventre dos mortos e estes, ás vezes, impelidos pelo movimento brusco dos remos, resvalavam, esgazeando os olhos mortiços, nublados. O bom do sr. Pe Fernando, santo levita que não envergava "a batina oficial como um distinto de emprego ou como uma capa de camarista", há muitos dias que não tirava a sua sotaina e sobrepeliz, e andava assim de povoação em povoação, de sítio para sítio, de dia, toda a noite, sem um momento de descanso abeirando-se dos doentes, confessando este, consolado aquele. No dia 30 de Junho desse ano, a meia-noite surpreendeu-o ao sul da Costa Nova, num miserável palheiro, afagando com orações um pescador moribundo. Era uma hora já adiantada da noite quando o pescador com voz fraca, humilde, balbuciou estendendo o braço: - Adeus, senhor padre Fernando!
E como um santo, morria.
Soprava do sul a aragem branda, leve, perfumada de maresia. De pé no cimo duma lomba de areia, a batina flutuando com a viração, o bom do senhor padre Fernando olhava o mar, o mar imenso, que ele aquela hora não via, mas sentia, olhos rasos de água, o coração oprimido, elevando a Deus os seus pensamentos, implorando a misericórdia da Senhora da Saúde. E chorava a bom chorar.
Súbito, um ruído brusco cortando o silêncio, vindo lá do fundo, sacudiu-o, e trágico, rápido, desceu a íngreme ladeira da lomba. Estacou. À luz duma candeia de azeite dois homens rodeavam um pestilento. Um amarelo de bílis escorria-lhe já pelos cantos da boca ressequida pela febre. Tressuava. Tomou alto a respiração, estrebuxou e, inclinou a fronte ao peito do padre - Levem-no, que está morto - disse o senhor padre Fernando.
Os dois homens pegaram nele, segurando-o um pelos pé outro pela cabeça, conduziram no à bateira mais próxima. Remaram para o "outro lado" da Gafanha. Já na mota, transladam o morto para uma padiola e, pegando um à frente e outro a trás, seguiram antigo caminho de areia em direção a Ílhavo.
Os homens eram dois atrevidos pescadores labregos, pouco conhecendo da nossa terra. Caminhavam silenciosos, abatidos, aqueles dois extraordinários vultos que o mar tantas vezes encorajou de ralé. A padiola tremia ao momento daqueles possantes ombros. O morto, sacudido agora revirou-se, descaindo-lhe uma das pernas. Junto a uma mouteira de tramagueiras, pousaram a padiola para aliviar. Fizeram um cigarro, e o patanisco, fuzilando na escuridão, iluminou súbito o rosto do morto.
- Parece que o homem abriu os olhos.
- Qual abriu nem meio abriu! Tu não ouviste o senhor padre dizer: - levem-no, que está morto! Antão está. Pega que se faz tarde, são duas horas.
- Põe-lhe essa perna para cima.
Ergueram a padiola e continuaram a caminhar, atirando para o ar as prolongadas fumaças. Pesadas nuvens, negras como veludo, encobriam um raquítico luar que, aparecendo ás vezes, esbatia a figura do morto na areia branca das esguias dunas. Voejavam agoirentas e niticoras aves. Chegava um rumor do mar, como alguém a gemer ao longe. E nem uma casa e nem uma luz e nem indício de gente por ali perto. Caminharam, caminharam e a tatear o carreiro duvidoso, quando além, na torre, soou a meia hora p'ras três. Estavam, sem o saber, á ponte Juncal. Passaram a ponte.
Seguiram a congôsta da Barquinha, desceram o pequeno declive do Outeiro. No encrusar de dois caminhos pararam, indecisos, não sabendo por onde seguir.
- Ó que diacho! - disse um deles - Qual será o caminho pró cemitério?
Erguendo a cabeça na escuridão e apontando com a mão direita, o morto respondeu: - Quando eu era vivo ia por aqui, agora que sou morto, levem-me por onde quiserem! E levaram, seguindo a indicação do morto com vida ...
No cemitério abriam-se profundas covas, como é costume em tempo de epidemia. Em cada uma sepultavam-se três, quatro e mais cadáveres. Trabalhava-se ali todo o dia e toda a noite.
Aquele homem que os da padiola julgavam morto, foi estendido num forte caixão de pinho e este lançado a uma sepultura onde já se encontravam dois. E nem uma lagrima, nem sequer uma reza.
O coveiro, um tisnado e forte rapagão dos seus trinta e cinco anos, atirou-se á enxada e começou de lançar pazadas de terra vermelha para cima. Vinha já rompendo a manhã quando o coveiro dava o alisar á sepultura. Retirou-se. Exausto de fadiga atirou-se para cima duma velha lousa e adormeceu.
... Passaram-se já quinze dias. A cólera tendia a desaparecer. O povo ilhavense, mais animado agora, juntava-se no adro da igreja, fazendo preces, e ia dali para o cemitério chorar a perda dos entes queridos; mas não encontravam as sepulturas dos que muito amaram, e redobrava de amargura a sua profunda dor.
Mas o coveiro-vígia, ali em serviço permanente, vinha notando há dias que, da cova onde se sepultou o da padiola, surdia vezes um ruido vago, estranho, a modos como o som de assobio: fraco, á semelhança do sibilar do vento em ciprestes, e então cismava, cismava ... - que diabo seria aquilo? - dizia - franzindo a testa.
Uma manhã, porem, a sua curiosidade já demasiado espicaçada, levou-o até lá. Deitou-se de bruços sobre o coval, aplicou e colou o ouvido á terra. Não lhe restava duvida, alguém falava agora baixinho e ouvia distintamente um soquear em tábuas.
- Quem quer que seja está aos murros no caixão - observou. E de repente, fortemente, o morto gritou:
- Eh gente! Eh de cima! E o coveiro deu um salto, tomou ar, estacaram-se-lhe os cabelos como rama de vassoira, e atirando o chapéu com violência, tornou a deitar-se, aplicando de novo o ouvido e berrando assim:
- É de baixo! Quem chama é gente, ó quê?!
- Eh! Jaquim Salimo, sou eu, homem! Então eu fico aqui eternamente?! Olha que já se me acabou hoje a brôa de pão que trazia no bolso!
Sem mais palavra, o coveiro pega da enxada e, com a fúria de um leão ferido, começou a cavar, a cavar, até que uma tábua arrepanhando a terra, separou-a. Nervosamente, com o olho da enxada deu tamanha pancada no caixão que as tábuas superiores saltaram em bocados.
Vagarosamente, pachorrentamente, o suposto morto esfregou os olhos, saltou dum pulo para cima e, agarrando-se ao Salimo, deu-lhe tal esticão ás costelas que este, aflito e sem ar resmungou:
- Eh ti Salvador, parece que nem esteve quinze dias sem comer! Anda daí beber um quarteirão de aguardente, homem!
E lá foram os dois de braço dado prá loja da ti Calçoa.
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Pós scriptum: Correu fama este facto. Houve nesse tempo quem risse e quem chorasse. A antiga casinha onde habitou o ti Salvador, ainda existe e encontra-a na Viela do Salvador de Ílhavo, lá ao fundo, defrontando com a antiga casa das tias Angélicas.
in jornal O Ilhavense de Maio de 1922