quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Histórias e Mistérios de Ílhavo: lobisomens e promessa ao Senhor Jesus de Ílhavo










O Luís Bentevi (alcunha), era homem de alma ingénua, nascido e criado no meio piscatório que era Ílhavo de antanho. Sempre a ouvir do mulherio crédulo, lendas de espíritos malignos, casos estranhos de assombramento, correrias de lobisomens e aparecimentos de bruxas, respeitava, com terror supersticioso, todas as abusões, não gostando que o chalaceassem a esse respeito.

Se à noitinha via uma estrela cadente cruzar no espaço, erguia-se com respeito e pronunciava sempre a frase protetora: — «Deus te guie!» porque na sua crença, era uma alma desgarrada que procurava aflita o caminho do céu.

Não raro, a dormir já, estremecia na cama e acordava a mulher, aterrado, trémulo de medo:

—Eh! Luiza! Luiza! — ouvira o galope desabrido dum lobisomem, lá fora. — Que seria?

Escuta, Luiza! Acho que é um lobisomem!

—Tem juízo home, tem juízo... — dizia-lhe a mulher e, quedo e aconchegado ao corpo da esposa, ficava atento, balbuciando rezas.

No entanto, na vida arriscada da pesca, ninguém o tinha na conta de cobarde. Duma feita na Costa Nova, trabalhando na companha do «Galo Velho», fora ele que enfrentara o escrivão que armado de varapau, crescera arrogante para mais de vinte homens que reclamavam quinhões atrasados. Atraída pela discussão azeda dos dois, toda a companha se juntou em volta, esperando entre risonhos e comovidos, numa ansiedade mal contida, o desfecho daquela altercação que devia de ser terrível. Ninguém dava nada pelo Bentevi que á vista do outro era um cinco reis de gente. O próprio escrivão virou-lhe as costas num gesto de desprezo, mas o Bentevi avançando sobre ele, disse:

— Nem és homem, nem és nada! Se me tocasses, até te roía os fígados!

Aquela ameaça, o escrivão virou-se de frente, encarou o seu contendor e sorridente, certo da vitória, derreou o corpo de flanco, levantou no ar o pau com pontaria á cabeça do Bentevi. Ouve um sussurro de aplauso entre os partidários do escrivão. Súbito, porem, um grito partiu, e o escrivão, abaixando-se com ambas as mãos no ventre, continha o sangue que jorrava de uma larga e profunda ferida. Acudiram todos, alguns com pena, outros com satisfação, aplaudindo o salto ágil do Bentevi que, livrando-se da paulada certeira do seu inimigo, lhe cravara no ventre a lâmina duma faca.

À meia noite, para lá da Barra da Vagueira, o Bentevi recebia das mãos da esposa umas moedas e uma medalhinha que ela lhe dependurou ao pescoço, lavada em lágrimas:

— Adeus, homem!

— Adeus, mulher! Para onde eu for, de lá te mandarei notícias! E partiu fugido para o Brasil.

Havia mais de um ano que o Bentevi vivia em Santos num sítio em que ele exercia a profissão da pesca. Que terríveis noites não passava o desgraçado, pungido pelo remorso, a ouvir sempre o grito agudíssimo que o escrivão largara quando a faca lhe entrou no ventre! Sentia ainda na mão a tepidez do sangue que jorrara, em gorgolões do ventre da sua vítima. 

À noite, no rancho, depois que os camaradas recolhiam, as grandes sombras das árvores, ao pálido luar, tomavam formas espectrais que o amedrontavam. Figuravam-se-lhe braços ameaçadores, vultos embuçados que avançavam em passos subtis e parecia ouvir gritos, rumores de vozes ou lamentos doridos vindos do fundo da mata que negrejava para lá da casita.

— Que raio de vida esta, Senhor!... Perdoai-me Senhor Jesus, que eu já estou arrependido! E aquela mulher sem me responder, Senhor! Terá havido alguma desgraça?

Compungia-o a ideia de ter morto o escrivão. A mulher não lhe escrevera ainda, por isso não sabia se a sua vítima era deste mundo ou não. Uma tarde, em que ele viera a Santos, só pode regressar ao sitio, pela tarde da noite. Estava um esplêndido luar e a estrada do Cubatão, muito branca, insinuava-se pelo arvoredo e perdia-se nas sombras quietas. Era grande o silêncio e as sombras das árvores que se despejavam sobre a estrada, tornavam-na, por vezes, negra, mas logo adiante a lua reaparecia alumiando o caminho.

Ele caminhava a olhar o céu todo estrelado onde a lua brilhava. De repente, um grito silvou na mata. O Bentevi deteve o andar, olhando em roda. O luar cada vez mais brilhante, refletia na água quieta do rio que ladeava a estrada. Bentevi retomou o caminho, mas não havia dado dez passos quando, de novo, ecoou o mesmo, grito agudo que desta vez parecia proferir o nome dele: Bentevi!  O pescador sentiu um arrepio de medo e ficou a olhar, mas tudo era mato e sombra, nem vivaalma, nem uma luzinha dum rancho! Uma voz interior parecia dizer-lhe que não prosseguisse, mas ele dando mais uns passos ouviu novamente o mesmo grito agudo: Bentevi!

Estremeceu violentamente. Persignou-se e ficou preso á terra, agarrado ao solo como aquelas árvores frondosas que pareciam esconder o assombro. 

Uma ideia sinistra lhe veio aumentar o pavor. Seria um lobisomem? Seria a alma do escrivão? Levantou os olhos ao céu e uma estrela cadente riscou o espaço.

— «Deus te guie!

Seguidamente o mesmo grito lamentoso que parecia desferido por alguém que sofria: Bentevi!

Levou a mão à cinta e apertou a coronha da garrucha e, sacando-a para fora, levou-a à altura dos olhos e fez fogo ao acaso, Um grande estrondo ecoou no silêncio rolando trovejantemente. Bentevi!! Benteviii!!

Conjuntamente com estes gritos um ruflo de asas cortou o espaço sinistramente,

— Valha-me o Senhor Jesus de Ílhavo!

E com os dedos crispados, arrancou de sob o peito da camisa a medalhinha com a imagem do Senhor Jesus de Ílhavo que a mulher lhe pusera ao pescoço na noite da sua fuga. Segurando na mão fechada a pequenina medalha levantou ao ar o braço, como que a esconjurar o perigo e lá foi seguindo vagarosamente a estrada, ouvindo a voz ou ave agoirenta, pronunciar, já muito longe: Bentevi! Benteviiii!

Ao outro dia, dificilmente puderam convencer o pescador da existência nas matas brasileiras duma ave que canta pronunciando o seu verdadeiro nome: Bentevi!

Desanuviou-se a alma do nosso homem quando passado dois dias recebeu a primeira carta da mulher em que lhe dizia ... o escrivão escapou, mas agradece-o ao Senhor Jesus de Ílhavo a quem fiz a promessa, enquanto viva for, se o escrivão escapasse e tu chegasses a porto de salvamento, de ir todos os anos na procissão, vestida de Magdalena ... Nesse ano promoveram ao Senhor Jesus de Ílhavo, festa rija. É que dos Brasis chegará farta esmola e ordem expressa para que a função fosse de arromba.

João Teles, in jornal O Ilhavense
de 2 de Setembro de 1923.


quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Imagem de Nossa Senhora da Saúde da Costa Nova do Prado

 

In Invocações Marianas na Diocese de Aveiro, Pe. Domingos Rebelo, 1988

Calcário policromado

Capela da Costa Nova do Prado, Gafanha da Encarnação, século XVI (?)

66,5 alt x 24 larg cm

Capela do Cemitério da Gafanha da Encarnação 1932

 

in jornal O Ilhavense, nº945, 1 janeiro 1933

Gafanha da Encarnação - Benção da Capela do Cemitério

Dia 9 de Dezembro último. A manhã sempre serena e linda, parecendo associar-se, com tristeza de outono, ao ato que ali vai ter lugar. Pelas 8 horas sai da igreja matriz a Irmandade da Senhora da Encarnação com o reverendo Prior da freguesia, dois seminaristas e muito povo no coice (um cortejo caminhando no comprimento de dois quilómetros). Entra-se no cemitério! Amplo e belo campo santo, bem situado, longe da povoação, em lugar pitoreseo e alegre, mais parecendo um jardim-dormitório do que uma necrópole; um excepcional campo sagrado, sem aquele pesado aspecto lúgubre, tristonho, da maior parte dos cemitérios do país. Abre-se a capela das encomendações, concluida há poucos dias. À direita, uma sacristia e à esquerda, uma sala para autópsias.

Na tribuna, um Cristo agonizante, de tristes olhos para o chão, bela imagem do Senhor dos Aflitos, parecendo pedir dali misericórdia para os defuntos que entram naquele silêncio-eternidade.

Festa de Nossa Senhora do Carmo da Gafanha de 1932

 in jornal O Ilhavense, nº927, 21 agosto de 1932


Festas & Romarias: SENHORA DO CARMO

Hoje, festeja-se na Gafanha do Sul a imagem da Senhora do Carmo, a que assiste a Banda Bingre Canelensee a a Filarmónica Ilhavense. Como é o primeiro ano que se faz a festa, depois de construida a estrada daquele lugar, de esperar é que seja muito concorrida.

Roubo do espólio da Capela da Ermida em 28 Abril 1932

 in jornal O Ilhavense, nº911, 1 de maio de 1932

Roubo importante:

Na sexta-feira passada, à tarde, quando o sr. Joaquim Rezende, lavrador, do lugar da Carvalheira andava no cultivo de uma terra com ontras pessoas de sua familia, os gatunos, que ainda se não sabe quem sejam, entraram-lhe em casa e roubaram-lhe 3.800$00 em dinheiro, um cordão de ouro, uma corrente e 4 ligas do mesmo metal e 4 resplendores de prata da imagem da Senhora do Rosário da Ermida, de cuja confraria o sr. Rezende é tesoureiro. A autoridade administrativa procede às investigações.