sexta-feira, 4 de outubro de 2013

São Francisco de Assis em Ílhavo: apontamentos



"Na impossibilidade de abrir as portas dos claustros a todos quantos a ele

acorriam de todas as partes, atraídos por ele, desejosos de formarem-se na sua escola,
Francisco fundou uma verdadeira terceira ordem, a dos Terceiros.
O que nunca fundador algum de Religião jamais imaginara – tornar-se a vida conventual
praticável a todos – Francisco foi o primeiro que tal concebeu e realizou com grande sucesso"

P.e Bartolomeu Ribeiro, Os Terceiros Franciscanos Portugueses, 1952.


 Filho de um rico mercador de panos, Francisco (embora baptizado João, recebe essa alcunha por ser filho de mãe francesa) nasceu em Assis, em 1181. É uma das maiores figuras da história da Igreja. Depois de uma juventude abastada, converteu-se à mensagem evangélica, abandonando todas as riquezas paternas. Funda uma Ordem religiosa mendicante, que baptiza humildemente de Ordem dos Frades Menores e que viria a ser aprovada pelo Papa Inocêncio III. Em 1223 festejou a noite de Natal num bosque de Greccio, com missa solene, perante um presépio armado no meio das árvores. 
São Francisco de Assis
Igreja paroquial de São Salvador de Ílhavo
barro policromado e dourado
83 alt x 53 larg x 28 prof
PSSILH 0030
Os Franciscanos, após este acontecimento, tornaram-se nos grandes divulgadores do culto do Presépio, popularizando-o. Consumido pela doença que o contaminou numa das suas viagens refugiou-se, em 1224, numa localidade próxima de Arezzoo, onde teve uma visão de Cristo, de que lhe ficaram os estigmas. Faleceu em 1226, tendo sido canonizado pelo papa Gregório IX em 1228.
  Foi, desta forma um dos santos mais populares de toda a Cristandade, fundando a Ordem dos Frades Menores, da qual surgiriam depois diversos ramos e reformas (Observantes, Conventuais, Capuchinhos, Menores da Imaculada), outras ordens (Clarissas, Ordem Terceira), diversas comunidades e congregações.
 
   A sua presença em Portugal ocorreu bastante cedo, desde 1217, portanto ainda em vida de S. Francisco, recebendo apoio de reis e infantas, onde se destacaram as Províncias da Arrábida (1539) e de Santo António (1568), da qual derivou a Província da Conceição (1706).
 
   Em Ílhavo, a sua devoção atingiu maior culto quando da instalação definitiva da Ordem Terceira de São Francisco de Ílhavo na demolida Capela das Almas, mandada construir em 1760 pelo Prior João dos Santos, e sagrada em 1771, da qual subsistem as representações mais significativas do santo: a de origem em barro do século XVII e duas processionais ditas de roca do século XIX.  
 
A escultura de vulto do século XVII, em barro policromado e dourado, aqui apresentada, que esteve ao culto inicialmente na Igreja paroquial de Ílhavo, sendo descrita nas informações de 1721 e de 1758, depois transferida para a Capela das Almas, e mostra o Santo com o hábito franciscano e estigmatizado, de pé em posição frontal, abrindo os braços. Apresenta tonsura e o rosto alongado, de feições que deixam transparecer uma expressão de sereno êxtase, acentuada pelo olhar cândido e complacente.

As outras duas esculturas, ditas de roca, sairiam em andores na Procissão das Cinzas em Ílhavo e creem-se atribuídas ao escultor ilhavense Anselmo Ferreira, outrora recolhidas na Capela das Almas. Representam São Francisco recebendo os estigmas e São Francisco com a cruz, hoje mutiladas.

São Francisco recebendo os estigmas
Igreja Paroquial de Ílhavo
século XIX - atribuído a Anselmo Ferreira
PSSILH 0043
São Francisco da cruz
Escultura de vulto de roca, processional
madeira policromada
Provenientes da Capela
das Almas de Ílhavo
   É talvez o santo mais popular, logo a seguir a Santo António, graças à sua proximidade com o povo, os votos de pobreza e humildade, bem como do prestígio alcançado por muitos dos seus seguidores (entre os quais o próprio santo lisboeta). O grande número de casas e conventos, que se estabelecem desde o século XIII, fomentou naturalmente a vastíssima produção de imagens do santo, e dos diversos episódios da sua vida e lendas. Com uma rica iconografia, encontra-se geralmente dividida em duas fases - a primeira, quase exclusivamente italiana, decorre entre os séculos XIII e XVI; sendo a segunda, posterior ao Concílio de Trento, e mais europeia. O episódio mais divulgado foi justamente o milagre da Estigmatização de S. Francisco (festejado no antigo Calendário Litúrgico a 17 de Setembro), ocorrido em 1224, no eremitério do Monte la Vernia, dando origem ao seu atributo mais conhecido.
Arquivo da Ordem Terceira de São Francisco de Aveiro
OTSFAVR Livro de Profissão de Irmãos 1726-1783
registo de entradas para Ílhavo

 

   Com uma iconografia abundante, São Francisco é representado envergando o hábito de Frade Menor, atado na cintura por um cordão com três nós, símbolos dos votos de pobreza, castidade e obediência, da sua ordem. Têm os estigmas nas mãos e nos pés. Inicialmente surgia com barba, mas a partir de Giotto aparece imberbe, tendo a Contra-Reforma regressado às suas representações com barba e expressão dolorosa. Os atributos menos frequentes são a cruz ou o crucifico na mão, o livro da regra, um crânio, um pássaro na mão, um lobo aos pés, colocado junto de um presépio.
 
A Igreja faz memória do fundador dos Franciscanos no dia 4 de Outubro.








Santa Clara PSSILH 0045
Escultura de vulto de roca, processional
em madeira policromada
séc. 18 autor desconhecido
A Procissão das Cinzas de Ílhavo: andores e imagens de vestir
Procissão da Cinzas em Ílhavo, andor de Santa Clara
imagem de roca processional
A paróquia de São Salvador de Ílhavo, por extinção da Ordem Terceira, conta com um legado patrimonial de grande riqueza artística, iconográfica e devocional. Deste legado fazem parte um conjunto de imagens de roca.
Rainha Santa Isabel PSSILH 0044
Escultura de vulto de roca, processional
em madeira policromada
séc. 18 autor desconhecido

 

   A organização de fiéis em fraternidades de irmãos da penitência na família franciscana, foi potenciada desde o primeiro momento pelo próprio São Francisco de Assis, sendo estes enquadrados numa estrutura singular, a Venerável Ordem Terceira de São Francisco. Desta forma, a Ordem Terceira, primeiro fundada em Aveiro c. de 1670, desde 1726 aceitou irmãos oriundos de Ílhavo, que, a partir de meados do século seguinte, c. de 1760, se começaram a autonomizar, reunindo na Capela das Almas de Ílhavo, vulgarmente denominada na documentação por Capela de Santo Ivo de Ílhavo.
A procissão das Cinzas era o ponto principal no calendário.


Virgem da Soledade PSSILH 0042
Escultura de vulto de roca, processional
em madeira policromada
séc. 18 autor desconhecido











Se em Aveiro, por convivência vizinha com o Convento de Santo António, o ritual processional praticado na solenidade da Procissão dos Terceiros era acalentado pelos leigos franciscanos e egressos deste extinto Convento, em Ílhavo esta pratica ganhou novo fulgor com o ingresso de algumas da imagens do extinto Convento da Madre de Deus de Sá, Convento feminino da Ordem Terceira de São Francisco demolido em Aveiro em 1885.
Pelo que algumas das imagens de roca (imagens de vestir) antecedem em antiguidade às imagens de Aveiro presentes na mesma solenidade.  Nesta procissão Terceiros Franciscanos  mostravam um programa iconográfico, onde cenas relevantes do franciscanismo, eram capazes de educar os fieis de forma

Santo Ivo PSSILH 0046
Escultura de vulto de roca, processional
em madeira policromada
autor desconhecido
simplificada para o conhecimento da história da Venerável Ordem, seu fundador e seus santos.
Para destacar esse realismo, as feições das esculturas e a disposição destas em grupos escultórios, apresentavam uma dinâmica teatral, que reforçava ainda mais a narrativa proposta, potenciando a emoção nos crentes.
Nesta figuravam o andor de Santo Ivo, o andor de Santa Clara, o andor da Rainha Santa Isabel, o andor de São Francisco recebendo os estigmas e o andor de São Francisco da cruz.

 Estas imagens reúnem um considerável conjunto de peças de vestir e ornamentos associados, discriminadamente:

Conjunto de vestir Senhor dos Passos (4 peças): alva branca de algodão rendada, túnica de gorgorão de seda roxa bordada em fio metálico a ouro, túnica nova de veludo roxo com galão dourado em ziguezague nas mangas decorada com missangas pretas e almofada de veludo roxo bordada a matiz em fio policromo.

Conjunto de vestir Virgem da Soledade (15 peças): três camisas interiores brancas, um véu de renda, um manto de cetim azul bordado a ouro e vidrilhos, duas túnica roxa, uma túnica de veludo roxa com galão, um punho de veludo roxo com galão, uma túnica de cetim branca, dois punhos de cetim branco, um cinto de veludo roxo com galão, um lenço de mão e um escapulário bordado a fio metálico.

Conjunto de vestir Santo Ivo (17 peças): uma batina preta com mangas; uma batina preta sem mangas; duas mangas pretas de batina, um roquete branco de renda bordada, duas mangas bordadas do roquete, uma gola sobre-roquete preto com botões, duas golas de batina, duas camisas brancas, quatro punhos de camisa brancos, uma camisa interior sem mangas preta.

Conjunto de vestir Rainha Santa Isabel (6 peças): um manto verde-escuro de veludo bordado a fio metálico, uma túnica verde-escuro de veludo bordada a fio metálico, uma camisa branca sem mangas, um saiote branco bordado a fio metálico, um cinto branco e laço franjado a ouro.

Conjunto de vestir Santa Clara (5 peças): uma camisa branca, uma túnica preta, uma coifa de hábito branco, uma faixa branca da coifa, uma capa castanho claro, uma capa preta.

Conjunto de vestir São Francisco de Assis (4 peças): duas túnicas castanhas e dois cordões.


© Hugo Cálão, 2013