Alminhas

As alminhas de devoção popular, que antigamente se encontravam com muita frequência, ainda se podem encontrar dispersas por todo o município, assinalando desastres, tragédias e crimes praticados nos locais onde elas se edificavam.
Em Ílhavo, existiam muitos desses retábulos, pequenos altares construídos em nichos abertos nas paredes das casas ou de muros de propriedade de pessoas que faziam a promessa, ou que, por devoção apenas, os mandavam fazer, uns pintados a óleo, outros entalhados em madeira, outros ainda modelados em barro vermelho da região.
As “alminhas” eram então nichos onde se colocavam flores e uma vela ou copo de azeite com lamparina, cuja luz estava sempre acesa para alumiar o caminho do Céu a todas as almas que precisassem de encontrar esse caminho.
As alminhas encontravam-se muitas vezes nas encruzilhadas junto às estradas ou no local onde algo mau acontecera e alguém morrera. Por vezes, eram pequenas capelas. Nos painéis pintavam-se Santos ou o Cristo Crucificado e a visão do Purgatório com as almas no meio do fogo, erguendo as mãos para o alto; por baixo inscreviam-se sempre as iniciais P.N.A.M. (Pai Nosso Ave Maria).
Era hábito, ao passar pelas Alminhas, parar para orar, depois de fazer o sinal da cruz.
Tentaremos fazer uma síntese da devoção às Almas do purgatório no Concelho de Ílhavo.

Altar das Almas (Igreja paroquial de Ílhavo)

Retábulo das Almas Igreja de Ílhavo, c. 1780
atribuído a António José Ferreira (entalhador) 
José Tavares Pimentel (pintor)
Do lado da epístola da igreja paroquial existe um antigo altar denominado Altar das Almas, por nele predominar e presidir em lugar de destaque um painel, ladeado até aos anos 70 de 1900 das imagens de São Sebastião e de São Brás. Como que a presidir este litúrgico conjunto de imagens, ressalta e admira-se o tema pitoresco do quadro, que na sua forma oval bem proporcionada, chama a atenção dos apreciadores da simbologia cristã. Nele se vê conjunto de figuras de bispo, rei e rainha, negro, pintadas entre as chamas do purgatório, saindo o incógnito artista fora da vulgaridade, dando vida muito expressiva ao seu objetivo. A dar remate mais litúrgico e mais completo ao conjunto iconográfico, fica sobranceira, em plano superior e dentro de maquineta em apoio mísulado a imagem de São Miguel Arcanjo, do século XVIII.

Capela das Almas ou de Santo António de Ílhavo (demolida)

Com o advento da república alastrou por todo o país desaforada perseguição religiosa. Não foram somente postos à prova de sofrimento os altos membros da hierarquia de Igreja. Com tristeza se viam e contemplavam, por toda a parte, as organizações religiosas desumanamente desmanteladas, demolidos muitos dos seus templos e Capelas, que abusivamente eram ocupados por intrusos, ou entregues ao saque e sacrilégio. Lamenta-se que nesta ofensiva politica, entrassem por vezes individualidades reconhecidamente honestas e incapazes de afronta ou ataque, iludidos na sua boa fé. Tempos conturbados da nova situação politica em que se faziam planos, propagados no tempo da propaganda, com vista à subida social por interesses próprios, ainda que acentuadamente desvantajosos para o bem e utilidade pública e particular.
Ílhavo também não ficou isento das refregas nacionalistas, que no choque de pretensões astutas, atingiu o catolicismo na Vila, que, por um estranho acontecimento, viram alterada e estrangulada a vida religiosa da Ordem Franciscana que funcionava na antiga Capela das Almas. De nada serviu a valiosa e sensata intervenção do Administrador do concelho, o Dr. Samuel Maia, espírito coerente e respeitador e a Capela, um vetusto edifício construído em 1760 foi demolida em 1910, sob a estranha e falsa acusação de que ameaçava ruína, deixando uma grande ferida no coração dos que dela se socorriam e prestavam especial culto às Almas do Purgatório, que primitivo painel de barro originara grande devoção.
Almas da Rua Ferreira Gordo

Almas do Corgo Comum

Existe uma pequenina capela, dentro do angulo formado pelas estradas Aveiro-Ílhavo e Corgo Comum-Lagoa de Ílhavo. Tem forma quadrangular com 2m de comprimento e 1,5m de altura aproximadamente. Na parede fundeira interior tem o tradicional quadro de madeira com a pintura das Almas do Purgatório com a inscrição na base: - Pelas Almas P.N.A.M. (Pai Nosso Avé Maria). Porta gradeada de ferro.

Almas da Rua Ferreira Gordo

Na Rua Ferreira Gordo, Avenida da Escola Primária, a uns 20 metros da estrada nacional 109, Aveiro Vagos, existe em um muro uma pequena Capelinha ou nicho com 50 alt x 80 larg x 50 prof cm. A imperfeita tábua das Almas, em relevo de madeira pintado, é encimada pelo costumado altarzinho, proveniente da demolida Capela de Nossa Senhora dos Milagres outrora existente na Quinta de Manuel Ferreira Gordo. Tem lâmpada e porta de ferro gradeada.

Almas do Casal

Na berma da estrada da rua que liga o Casal com o lugar da Légua, e a uns 40 metros ao sul da rua que do casal diverge para a Capela de Nossa Senhora do Pranto, está instalado um bloco de cimento com pouca altura. Na cavidade deste bloco existe um retábulo das Almas de pintura popular. Este pequeno monumento foi construído para recordar os transeuntes os sufrágios pela alma de um indivíduo que a muito tempo ali foi assassinado, por volta de 1893 de alcunha Manuel Moleiro, crime cometido pelo assassino de alcunha Chino-Pum. Consta-se que o Chino-Pum, querendo evadir-se às responsabilidades refugiou-se na Vista Alegre, que gozava de isenção judicial na altura por pertencer ao Couto da Ermida. 

Almas do largo da Capela

Na parede da casa sita em uma viela que, saindo do Largo da Capela termina na rua da Fontoura, existe um um painel das Almas com cerca de 40cm. Não sabemos a sua fundação, mas cremos já existir desde inicio do século XVIII. No plano superior do quadro contempla-se uma modesta pintura de Cristo crucificado e no plano inferior somente a pintura simples e simbólica de labaredas, sem qualquer representação dos motivos humanos alusivos às almas sofríveis que se costumam pintar. Era tradição na altura da Quaresma um Ílhavo, a diversas horas da noite, agruparem-se fiéis a rezar e a cantar fervorosamente litanias de sufrágios.

Almas existentes em depósito no Museu Marítimo de Ílhavo

Inv.50 - Alminhas - Baixo-relevo de madeira policromada. Segunda metade do século XVIII. Depositadas por Manuel Rigueira.
Inv.51 - Alminhas - Placa esculpida em madeira. Segunda metade do século XVIII. Provenientes da demolida Capela das Almas de Ílhavo. Entregues ao Museu por João Teles.
Inv.52 - Alminhas - Pintura sobre madeira. Provenientes  da casa da família Salsa, rua Arcebispo Bilhano Ílhavo, depositadas por Vitória Salsa.

Sobre as Almas depositadas por Manuel Rigueira com a sanefa franjada, idênticas à da Rua Ferreira Gordo, sabemos que haviam andado na proa do barco do Arrais Batata, durante largos anos, casado com a tia Joana do Arrais, em cujo estabelecimento estiveram penduradas.

Capelinha ou oratório do Senhor dos Aflitos e Almas

Na década de 30 de 1900, existia centrada na parede de uma casa que pertenceu a Joana Balseira, moradora na Rua Direita de Ílhavo, uma capelinha em cuja parede fundeira se expunha à veneração dos fiéis a imagem de Jesus Cristo crucificado, com cerca de 50cm de altura. Dentro do mesmo nicho havia igualmente um painel das Almas. A referida casa foi demolida para dar lugar à construção de um novo prédio pertença do capitão António Picado. Dado o sucesso da demolição, foi amigavelmente combinado que a referida imagem fosse transferida do seu primitivo lugar, e passasse a ter nova acomodação na casa de D. Conceição Franjoa São Marcos. 

Almas da Malhada (desaparecidas)

Ficavam situadas na Rua Nova e em frente à sua divergente para a Malhada. Em 1957 era um modesto nicho, medindo 30 alt x 20 larg x 10 prof cm. Nele se via uma tábua enegrecida coberta de fumo, tornando-se  impossível distinguir qualquer figura decorativa do quadro devido à lâmpada de azeite que alumia dentro do nicho.

Capelinha da Senhora dos Milagres e Almas (demolida)

A antiga quinta que outrora pertenceu a Manuel Ferreira Gordo, por determinação camarária, baseada em motivos de urbanização local, sofreu no final do século XIX um corte profundo de leste ao poente, ficando dividida em duas partes por uma estrada (hoje Rua Ferreira Gordo em sua memória, pela benemerência da cedência dos terrenos) estabelecendo comunicação entre a estrada Aveiro Vagos (nacional 109) e a rua de Espinheiro. Posteriormente a esta obra o município fez construir o edifício das Escolas Novas, contribuindo com todo o seu esforço para que à instrução pública fosse dado um melhor impulso na Vila, e contributo de higiene e mais fácil acomodação.
Com estes melhoramentos, a quinta ficou fracionada em duas parte, ficando, ainda hoje, a parte do norte delimitada por uma viela, que deu sempre serventia para a dita quinta. Com saída para esta viela, havia uma capelinha hoje inexistente, com cerca de quadro metros quadrados, a qual foi pertença de Manuel Ferreira Gordo e dos seus antepassados. Era dedicada a Nossa Senhora dos Milagres e às Almas do Purgatório, sendo muito frequentada pelos fiéis cristãos, que ali iam rezar, bem como cumprir muitas promessas e outros atos de culto. A sua importância, não só atraia valiosas esmolas e ofertas, mas também a cobiça dos meliantes, que, em certa noite assaltaram o templo apossando-se dos valores que encontraram. Inteirado do assalto e do roubo, Manuel Ferreira Gordo, Já sabedor dos nomes dos larápios, entrega-os ao poder judicial. Já é desaparecida há muito esta capelinha. Posteriormente a falecida viúva de Manuel Ferreira Gordo, Anunciação de Bastos Gordo, por devoção, por querer recordar a capela desaparecida e por voto de uma filha falecida ainda nova por doença, mandou construir um simples nicho das Almas no muro que hoje veda o resto da antiga quinta, na rua Ferreira Gordo, que já se falou anteriormente.

Alminhas do Rio Pereira (desaparecidas)

Na tarde de segunda-feira do espírito santo, parece que no ano de 1887, no regresso do tradicional arraial da festa, que naquele dia é costume realizar-se na Capela de Nossa Senhora de Vagos, deu-se um desastre que muito emocionou toda a gente que a ele assistiu. Terminados a festa e o arraial, um oficial de cavalaria galopava a toda a brida pela estrada de Vagos a Ílhavo. Nesta correria em plena estrada aconteceu o que era de prever. foi atropelado um pobre homem, de seu nome Santo, morador no Corgo Comum, que teve morte instantânea. O sinistro deu-se no Rio Pereira, próximo de Ílhavo. Ainda existe uma oliveira na qual foi colocado a comemorar o acontecimento um painel das almas, hoje desaparecido.

Almas da Amarona

No sítio da Amarona do concelho de Ílhavo, foi encontrado morto um individuo que era conhecido pelo nome de João da Inês, natural de Ílhavo. Tendo regressado do Brasil com fama de rico foi convidado para uma ceia no Bonsucesso.

Almas do Roldão
Almas das Agras (do Roldão)

Esta "Capelinha das Almas" existe na Agra de Ílhavo, à beira do caminho confluente com a estrada de Ílhavo a Vale de Ílhavo. As suas dimensões são aproximadamente 180 alt x 175 larg x 260 prof cm. O teto é pintado com estrelas a purpurina branca em fundo azul. Em frente da porta com grade de ferro existe um pequeno altar de madeira assente em base de adobes, encimado por nicho com oratório de madeira na parede dentro do qual se expõe retábulo das Almas do Purgatório. Um grampo de ferro fixo à parede serve de suporte a uma lâmpada. Foi construídas para comemorar um lamentável incidente ocorrido a uns 300 metros a poente, onde uma criança, ainda adolescente, quando pastoreava o seu gado, tendo adormecido sobre o muro de um poço que ali existia, caiu para dentro dele morrendo afogada. Nele se observa a inscrição: " Tributo de gratidão: Mandado fazer por Maria Rosa Roldão em memória de seu filho Manuel, morreu de idade 15 anos afogado num poço em frente, no dia 24 de Agosto de 1892."

Almas dos Moitinhos
Almas dos Moitinhos

Neste lugar foi construída uma "Capelinha das Almas" em comemoração de um outro desastre. Mede 255 alt x 176 larg x 260 prof cm. Foi construída com adobes de cal, e sobre o pequeno altar do mesmo material, permanecem habitualmente vasos com flores artificiais. Em plano superior existe um retábulo onde estão pintados Cristo crucificado e as Almas do Purgatório. No plano inferior do mesmo destaca-se uma outra pintura com a figuração de um rapaz que foi sinistrado por um boi em fuga. A corda do arrasto, ao longo da estrada, está presa simultaneamente ao pulso da vitima e à cabeça do animal. Este retábulo está encaixado num armário dentro da parede fundeira, onde se pode ver uma lâmpada com azeite das esmolas, as quais são ali depositadas superabundantemente. A porta de entrada tem grade de ferro permitindo a entrada às esmolas dos devotos. Nele se observa a inscrição: "Tributo: Mandado fazer por Manuel Martins de Oliveira, Maria Nunes da Fonseca em memória a seu filho João que morreu a 20 de Maio de 1838 com 12 anos, como se vê na pintura. Morreu arrastado por um boi desde a fonte dos Moitinhos até aqui representando um dos grandes mártires. Por sua alma P.N.A.M.G.P."

Capelinha das Almas de Vale de Ílhavo (demolida)

Principiada a sua construção cerca de 1887 no nascente das escolas de Vale de Ílhavo, no sítio do Campo Largo, não chegou a ser concluída, construção fervorosamente impulsionada por José Maria de Abreu, o Serrador de alcunha daquele lugar.  Embora não seguisse a construção este individuo fez instalar um nicho na sua casa, perto da estrada que vai para Salgueiro.

Almas do Crespo (Vale de Ílhavo)

Neste lugar existia uma família desaparecida por falta de descendencia conhecida pela alcunha de "Crespos". Por volta do ano de 1895, um dos seus membros chamado João Crespo, ao regressar do Brasil, veio viver para a casa e companhia de sua mãe, de idade já avançada. Em alta madrugada de cerco dia chuvoso e lamacento, apareceu o cadáver do Crespo, estendido e morto em um sítio que ainda hoje é conhecido por o 'Loureiro'. Examinado o cadáver, não apresentava ferimentos nem qualquer outro sinal que denunciasse vestígios de morte violenta, presumindo-se que o caso ali ocorrido, teria a sua explicação em morte súbita.
Afastada a hipótese de ato criminoso, ainda mesmo que fosse exercido por meio de sufocação, e atentas as suas qualidades de homem de bem  e de temperamento inofensivo, nunca se procurou averiguar do caso consumado. Em comemoração do acidente ali ocorrido, mandou a família construir, no muro paralelo à estrada, um modesto nicho com as Almas do Purgatório, hoje desaparecido. O sítio do falecimento e do nicho ficava ao norte da moagem motorizada do Carlos Valente.

Almas Redondas (Vale de Ílhavo)

No antigo caminho de ligação de Ílhavo para Vale de Ílhavo, e no local do seu cruzamento com outro derivante da Carvalheira para as Agras da Quinta do Badalo, foi construída uma capelinha que o povo tem denominado de 'Almas Redondas'. O oratório por ser maior que as demais, com seis metros de pé direito e seis metros de largura, era rematado em forma de abobada, à maneira de concha invertida. Sobre a cúpula ou concha, assim como cada um dos quatro cantos angulares do edifício assentam e sobressaem pirâmides, que lhe davam um aparatoso remate singularmente notado. O conjunto da obra deste edifício de planta circular denotava antiguidade quer pela sua exclusiva raridade e especializada natureza, quer pelo volume maciço das suas estruturas murais. Possivelmente seria uma antiga ermida verificando-se que em 1721 havia a antiga Hermida do Devino Spirito S.to do Val de Ilavo de sima que se anda reedificando e tem Confraria com mordomos na forma das mais por ser do Povo.
Em 1758 já o templo tem nome de Capela e não de Ermida. Em frente da antiga ermida a uns trinta metros de distancia, tinha sido colocado um cruzeiro, cuja construção tem a data de 1734. Este cruzeiro no ano de 1883 foi transferido dali para o Campo Largo, perto do edifício das escolas. Note-se que hoje, sobre as ombreiras do frontispício da entrada para a Quinta da Fradinha, no qual foi cravado um artístico nicho de pedra, assentam quatro pirâmides em pedra de semelhante altura idênticas.

Alminhas da Gafanha do Carmo

Foram inauguradas em 4 de Março de 1957. São compostas de um nicho dedicado às Almas com quadro comemorativo de Nossa Senhora do Carmo e Almas do Purgatório

Altar das Almas da Igreja paroquial da Gafanha da Encarnação (desaparecidas)

Alminhas do Padre Augusto (Gafanha da Encarnação)

Alminhas (Cemitério de Ílhavo)

A obra de reabilitação das Alminhas no Cemitério de Ílhavo, foi efetuada durante o primeiro trimestre de 2015, pelos funcionários da Junta de Freguesia, sendo que, todo o projeto teve o apoio da Arquiteta Adosinda Albuquerque e do Arquiteto Mário Celso, tendo sido da sua autoria o projeto e desenhos técnicos. Na sua inauguração Presidente da Junta de freguesia João Campolargo marcou que este é “um momento importante para todos os fregueses que ansiavam por esta obra. As alminhas permitem agora que o cemitério seja um espaço mais nobre, possibilitando uma maior dignidade aos seus utilizadores”. A Banda dos Bombeiros Voluntários de Ílhavo, na sua Romagem ao cemitério por altura das comemorações do 115º aniversário, animou o evento conferindo aspeto festivo ao evento. No final, foi efetuada uma largada de Pombos apoiada pela Sociedade Columbófila de Ílhavo.

Alminhas (Cemitério de Vale de Ílhavo)
As Alminhas do Cemitério de Vale de Ílhavo foram inauguradas no dia 11 de Junho, aquando das Festas do Divino Espírito Santo 2017. A obra, idealizada pelos arquitetos Óscar Graça e Mário Matias, "foicriada a pensar em todos aqueles que fazem e fizeram parte das Festas de Vale de Ílhavo", é referido em comunicado. "Pretende-se que com esta obra que as pessoas possam prestar uma homenagem aos seus entes queridos". A cerimónia contou com a presença do Presidente da Junta, João Campolargo, autarcas de Freguesia, representantes das Associações locais, Paróquia e comunidade, acompanhada pela Fanfarra de São Bernardo.


COSTUMES E GENTE DE ÍLHAVO DEVOÇÕES POPULARES − «ALMINHAS»
Por Diniz Gomes, in Costumes e gente de Ílhavo. Devoções populares: «alminhas», Vol. VI, pp. 215-220
Muitos têm sido os motivos porque quase desapareceram das paredes enegrecidas dos prédios antigos, das encruzilhadas tortuosas dos caminhos e das margens alagadiças dos nossos rios, esses curiosos, e já hoje raros, exemplares da iconografia popular, de tão bizarra e original factura em seus interessantes detalhes, alguns, até, comoventes nas legendas que os acompanhavam, mas que bem traduziam e revelavam a índole bondosa do nosso povo, o seu respeito absoluto pelos ingénuos símbolos das misérias alheias e tragédias humanas, e, mais do que tudo, o seu acrisolado sentimento religioso, que lhe iluminava os espíritos, afervorava as almas e dulcificava os corações sem mácula, puros, e sãos.
Quase todos aqueles se perderam na voragem dos tempos e reforma dos costumes, que fizeram diluir no ingrato esquecimento da gente de hoje os ecos da tradição popular, quiçá apagando até, com indiferença lamentável, os vestígios de tanta coisa linda e curiosa de que éramos detentores, e que os nossos avós haviam guardado com avareza e carinho.
Infelizmente, assim tem sucedido, e o mal já sem remédio, cada vez mais se há-de avolumar.
A mim, confesso-o com amargura e tristeza, doe-me esse criminoso alheamento de muitos pelos usos, costumes e dizeres de outrora, tantos deles que eu ainda conheci e observei, e que, talvez por isso mesmo, tenho recordado nos meus escritos, procurando salvá-los dum esquecimento mais do que certo, e para que assim possa ficar um registo insuspeito que sirva de elemento subsidiário para trabalho de maior fôlego, e tentando, mesmo, dar à gente moça da minha terra uma visão, mais ou menos nítida, das velhas e caducas usanças caseiras, de tão pronunciado sabor local.
De sobra eu sei que a leitura dos meus propósitos representa, o mais das vezes, uma dura penitência, e não menor sacrifício, para os novos deste tempo que, possivelmente, me leiam.
Mas que importa isso? Já agora, hei-de morrer com este jeito e feitio. É que, para mim, recordar o que já lá vai, resulta sempre num refrigério consolador para os meus aborrecimentos e dissabores, porque isso me alaga o coração, entrementes deprimido, de saudosas lembranças por tanta coisa interessante que os meus olhos viram e o meu espírito sentiu com alegria.
Coisas há, até, que eu em verdes anos presenciei, e que a cada passo me surgem no pensamento, sentindo um grande prazer espiritual quando delas falo ou escrevo.
E vem-me, então, à baila, pessoas, acontecimentos e anedotas doutros tempos, ignorados por muitos, que eu descrevo como posso e sei.
Ainda há pouco, em conversa, contei, por acaso, o que eram as populares e ruidosas festas a S. Pedro, que outrora se realizavam em Ílhavo, pelos pescadores das companhas da Costa Nova e S. Jacinto, afamadas pelos seus arraiais barulhentos, com seus bailes de roda: − a Caninha verde, o Triste Malhão, a Ciranda, o Regadinho, o Verde Gaio, e tantas outras, ali dançadas, numa alegria doida, por vários ranchos de pescadeiras de carnes rijas e olhos em brasa, chapelinhos de veludo presos à nuca por garridos lenços de merino, chambres brancos de pregas bem afogados aos colos, e rodados saiotes de baeta vermelha, rentinhos ao artelho.
No dia da festa, realizava-se a falada procissão, que enchia as ruas de gente a ver os pitorescos e originais andores, com pequenas reproduções de barcos do mar, de tão caprichoso  feitio e decoração, levando dentro, em minúsculas esculturas, os santos Apóstolos por campanha, e o calvo São Pedro, em jeito de lançar a rede ao mar, presa à bica da ré pela corda do roçoeiro.
Que de bulício e alegria se espalhava por aí, e que satisfação e azáfama não ia em casa dos mordamos, a cujas portas, por insígnia, se erguiam grandes mastros ornamentados a ramos de buxo e tramagueiras, encimados por enormes bandeiras de mariato, todo o chão, em redor, juncado de espadana verde e erva doce florida e cheirosa; a casa, bem aberta e franqueada para todos. Lá dentro, as sacadas de pão de coroa do Vale de Ílhavo, por ali à revelia; sobre a tampa larga do escabelo de castanho, grandes picheiras de vinho maduro, de cor baça que nem a tinta grossa do campeche de encascar as redes na borda do mar, e que todos bebiam à tripa forra, por grandes canecas da olaria churra e barata, de Ovar.
E que de abraços e vivas rasgados aos briosos mordomos, aos senhores arrais, aos escrivães das campanhas e, até, aos revezeiros da proa!
Pois então?
Era assim mesmo.
Eu lembro-me muito bem de tudo isso, dessas bacanais inconcebíveis, semi-pagãs, que davam brado na terra, e não poucas vezes rija pancadaria.
E ainda me recordo, também − os anos que já lá vão! − das frias noites de inverno em que, por horas mortas, se acordava estremunhado ao ouvir o canto monótono dos que lá fora na rua, e junto às casas em silêncio, discretamente alumiados por uma mortiça lanterna, andavam em seu piedoso voto praticando o velho costume de lamentar as almas, entoando uma ladainha arrastada e chorosa, rogando a Deus misericórdia para com as almas em sofrimento no fogo do Purgatório.
Naquele triste e penoso fadário, que uma grande devoção animava, calcorreavam as ruas e becos tortuosos e lamacentos da vila, de pés descalços e em cabelo, embrulhados nos seus coçados gabões de áspero burel, deslizando como sombras, e rezando como monges ou freiras em oração e êxtase divino.
Dentro das casas, dessas casitas velhas e acanhadas, mas sempre limpas e caiadinhas de branco, acendiam-se à pressa as candeias de azeite, que se penduravam nos postigos, por devoção e respeito, e todos ali respondiam às rezas dos de cá de fora.
A lamentação extinguia-se por fim, ante o tilintar discreto duma campainha, e os da confraria retiravam lentamente, murmurando rezas baixinho.
A dolorosa impressão que aquilo me causou, certa noite, quando, por curiosidade, quis seguir aqueles homens nos seus passos, para ver os seus rostos, ouvir os seus cânticos, ajoelhar, como eles, no chão frio e húmido, e acompanhá-los, comovido, em suas rezas!
Ainda bem que assim foi, de contrário eu não poderia contar-vos o que aí fica.
O que não posso já é reproduzir aqui o texto das suas litanias.
A música, essa, sei-a, porque nunca mais a esqueci.
Não menos interessante, e muito típico, era o velho e piedoso costume do rezar do terço, em coro, pelo tempo santo, que, em Ílhavo, se praticava todos os anos e em diferentes locais da vila, de preferência nos bairros mais populosos, como sejam o Arnal, o Pedaço, a Malhada, e outros, onde só habitavam famílias que viviam da faina do mar.
Nesses actos, tomavam parte somente mulheres, e quase todas pescadeiras.
A reza do terço fazia-se ao ar livre, já noite fechada, e em pequenos largos, ou nos becos mais desafogados da terra, com o mulherio acocorado sobre os rebates e poiais de pedra vermelha, saliências de alicerces das casas velhas, de telha valadia, com seus postigos de gonzos sem vidros.
Eram poucas? Eram muitas? Eram todas aquelas do sítio, com propósito e devoção que quisessem tomar parte na oração de resgate.
 Formavam, então, dois numerosos grupos, um de cada lado do recinto, bem embrulhadas em seus mantéus de pano fraldilha, por muitas delas habilidosamente tecido nos seus rangedores teares.
Certas havia, pobres de Cristo, que, para aproveitarem o tempo, para ali traziam as canastras da rede das artes e das chinchas, e nelas trabalhavam, mesmo às escuras, com grande desembaraço, fazendo cantar a agulha de rijo buxo no estreito muro que regula a malha, polido e lustroso pelo uso constante de largos anos.
Pois se elas, as pobrezinhas sem eira nem beira, e, quantas e quantas, viúvas sem arrimo algum, tanto precisavam de trabalhar...
Outras, com invejável ligeireza, fiavam a lã churra e trigueira que, haviam comprado na feira do bispo, da Vista Alegre, para depois tecerem as mantas de farrapos, às listas, os seus cobertores de inverno, e fazerem as meias grossas de agasalho para os seus homes.
Ó admiráveis e simpáticas mulheres da minha terra! Como eu vos admiro na constância perene da vossa virtude, que vos dignifica e exalta; no vosso amor e dedicação pelo trabalho, que vos alenta e engrandece; na vossa indómita coragem perante tantas desgraças que, às vezes, vos ferem! Ó vítimas sofredoras e resignadas dessas horríveis e pavorosas tragédias marítimas, que vos acabrunham e envelhecem prematuramente, que vos ferem e desgraçam, roubando-vos os homens e os filhos, únicos amparos e riquezas, e vós tudo sofrendo e chorando sem uma blasfêmia de revolta, sem um anátema de protesto nos lábios vincados pela dor, e tantas vezes mirrados pela fome!
Como eu vos admiro!
O que diziam, então, essas piedosas mulheres de há quase meio século, quando pelas noites frias e nevoeirentas do tempo santo, desferiam os seus cânticos religiosos tão magoados e sentimentais? O que diziam elas?
Quem souber ler esses breves compassos, há-de achar-lhes, estou certo disso, bucolismo e encanto. Os leigos em música podem acreditar em mim. Aquilo era incontestavelmente lindo e enternecedor, lembrando cânticos litúrgicos de igreja ou salmos religiosos de claustro.
Eu não os esquecerei jamais, velhinho que eu chegue a ser, porque a sua ressonância vive a cada instante nos meus ouvidos, como se fora o marulho embalador das ondas nas
entranhas vibratórias dum búzio ou concha do mar, acordando o meu sentimento, robustecendo a minha inspiração, e parecendo dizer-me num anseio atribulado, que não os esqueça... que não os esqueça...
Estas saudosas recordações, sempre tão agradáveis para mim, porque de Ílhavo sou e aqui desejo findar meus dias, fizeram-me desviar, sobremodo, do principal assunto desta crónica, − as Alminhas da devoção popular, que dantes se encontravam por aí com frequência, assinalando desastres, tragédias, e até crimes praticados nos locais em que elas se mostravam.
Em Ílhavo, terra de gente bastante supersticiosa, mas crente, que roga pragas e injúrias no mar, mas reza a Deus com devoção quando em terra, que crê em bruxas e duendes, mas exalta e agradece generosamente os milagres dos santos; em Ílhavo, existiam muitos desses retábulos, uns pintados a óleo, outros entalhados em madeira; outros, modelados com certo jeito em barro vermelho da região.
Perderam-se muitos deles, mas, felizmente, foi possível recolher alguns, que reproduzimos aqui pela gravura, no Museu Municipal desta terra, salvando-os da fúria demolidora dos maus, e dos insultos irreverentes dos ignorantes.
Ainda bem!
Ílhavo, Julho de 1940.
«ALMINHAS» - Modeladas em barro vermelho e policromadas
«ALMINHAS» - Baixo-relevo de
madeira policromada
«ALMINHAS» - Esculpidas em madeira