terça-feira, 17 de outubro de 2023

Pesca do bacalhau - reportagem de 1913

Nós, portugueses, manifestámos sempre grande predileção pelo nosso fiel amigo: o bacalhau, e, talvez, por via dele, iniciámos as amistosas relações diplomáticas com a nessa fiel aliada: a lnglaterra! 

Com efeito, no meado do seculo XIV, as cidades de Lisboa e Porto celebraram, com Eduardo III de Inglaterra, o importante tratado de 20 de outubro de 1353, que estabelecia, durante cincoenta anos, o direito recíproco de pesca nas costas de Portugal, da Inglaterra e da Bretanha, que nessa epoca estava sob o domínio inglês. Ora, sendo o bacalhau uma espécie que se encontra em alguns pontos da costa ingleza, é possivel que já nessa epoca os portugueses se dedicassem à sua pesca nessas paragens, ao abrigo desse celebre tratado. 

As trágicas viagens dos Corte Reaes, nos primeiros anos do seculo XVI, tiveram como consequência o descobrimento da Terra Nova dos Baralhacaus, como lhes chamam os documentos, em cujos bancos iniciámos desde logo as pescarias. D. Manuel, em 1506, por alvará de 14 de outubro, dirigido a Diogo Brandão, manda que este faça arrecadar para o Real Erário o dízimo do pescado da Terra Nova, que entrava pelos portos da província de Entre Douro e Minho. Em 1520, o mesmo rei faz a doação ao fidalgo minhoto João Alvares Fagundes dessas terras, e foi em virtude desta doação que, entre aquele ano e o de 1525, se estabeleceu na Terra Nova, com gente de Viana do Castelo, Aveiro e da Terceira, a celebre colónia do Cabo Brandão.

Desenvolve-se então extraordinariamente a pesca do bacalhau, havendo notícias de serem armados para ela grande numero de barcos nos portos de Viana e Aveiro. As guerras da rainha lsabel e dos holandeses contra a Espanha, em tempo de Filipe II, afugentaram os portugueses e espanhois dos bancos da Terra Nova, mas já em 1578, diz Packhurst, o número de navios portugueses que a ela se dedicavam não era superior ao dos navios ingleses, e, segundo o testemunho de Forster, em 1598, ainda lá mandavamos umas cincoenta embarcações. 

No período da decadência, abandonámos por completo esta pescaria, sendo nela substituídos pelos ingleses e franceses, que por muito tempo debateram os seus direitos sobre ela em melindrosa e prolongada questão diplomática, a que só há poucos anos pôs termo o acordo de 8 de abril de 1904, uma das bases da entente cordiale entre as duas nações.

Só mais tarde, já no século XIX, a Companhia Lisbonense de Pescarias fez renascer, entre nós, esta indústria, chegando a obter bons proventos nos anos de 1841 e 1842. Segue-se novo período de decadência até que a Companhia liquidou em 1857. Deste ano até 1882 a exploração foi completamente nula: de 1883 a 86 fazem-se novas tentativas, armando-se alguns barcos, o máximo 14, nos portos de Lisboa, Porto, Viana e Açores.

Em agosto de 1885 levantataram-se dúvidas na alfandega de Lisboa sobre se ao bacalhau pescado por navios portugueses devia aplicar-se o imposto geral do pescado ou a taxa de 33,5 réis por kilo da pauta geral em vigor, chegando-se à conclusão, depois de muitas reclamações, como diz a célebre portaria de 14 de abril de 1886, que sobre o valor declarado do bacalhau pescado em tais condições fosse cobrado apenas o imposto do pescado, 6,6 % ad valorem e respetivos adicionais, ficando, porém, a pesca limitada aos navios que no ano de 1885 andassem empregados nela! E sendo esses navios apenas doze, a este número teve de restringir-se daí em diante a indústria portuguesa! Manteve-se este estado de coisas até 1901 em que, a instâncias da Associação Comercial de Lisboa, a quem a benemérita Liga Naval deu todo o seu patriótico apoio, o parlamento votou a lei de 12 de junho daquele ano, que sujeita ao imposto de 12 réis por kilo o bacalhau fresco, em salmoura ou simplesmente salgado, pescado por navios portugueses com tripulação completamcnte portuguesa: voltáramos ao regimen equalitativo da liberdade de pesca, acabando de vez com um monopólio odioso, mantido ao abrigo de uma simples portaria! Quais os benefícios efeitos de um tal regimen, eles são bem patentes nos ótimos resultados que acusa o extraordinario progresso desta indústria nos ultimos anos. As estatisticas de 1902 a 1910 mostram uma media geral de 18 embarcações que pescaram 3:724 toneladas, no valor de 223:556 contos de réis anualmente. Mas os resultados resaltam ainda com maior eloquência se examinarmos os progressos da indústria local na Figueira da Foz: em 1901-1902, três navios apenas pescaram 517:330 kilos de peixe com o valor de 41:386$000 réis, aumentando sempre progressivamente o numero de embarcações e o produto da pesca que, em 1911, empregou 13 navios que pescaram 2.120:263 kilos, com o valor de 212:026$300 réis, oferecendo uma ótima remuneração ao capital empregado. Em 1912, Portugal mandou á Terra Nova 34 navios, foi o maximo até hoje atingido. Tem, pois, esta industria sempre constantemente progredido, e conta um larguíssimo futuro, sendo, dentro em pouco tempo, uma das mais prosperas do nosso depauperado organismo económico. Os navios que se destinam á pesca do bacalhau largam, em geral, dos portos portugueses em principios de maio, singrando com rumo aos Açores, e, chegados á vista daquelas ilhas navegam então a oestenoroeste até ao grande banco, que está situado ao sueste da ilha da Terra Nova, á distância de umas 25 léguas, tendo mais de 200 leguas de comprimento por 60 de largo, com fundo desde 20 até 76 braças. O navio fundeia logo que chega ao banco e o prumo acusa fundo de 25 a 30 braças, mas o fundeadouro não é fixo, deslocando-se geralmente o barco do sul para o norte durante a temporada da pesca. Arreiam-se então os dóris, as embarcações de que se servem os pescadores: são pequenos barcos de construção americana, cujo comprimento varia entre 4 e 5 metros, o fundo é chato e fusiforme, a borda bastante inclinada para fora, a roda de proa e a popa com bastante caimento também para fora, sem bancadas fixas. Cada um destes barcos é tripulado por um homem que usa na pesca a linha de mão, e todos se espalham em torno do navio, fundeando á distância de meia até uma milha. Preparadas as linhas, o pescador larga-as uma para cada lado do dóri e espera, de pé, que o peixe pique. Logo que o barco está carregado regressa a bordo, começando geralmente a faina ás 5 horas da manhã, atracando ao navio cerca do meio dia, para voltar á uma hora para o mar, dando finalmente por concluído o trabalho da pesca ao pôr do sol. Segue-se depois a escala e salga do peixe, que usualmente se prolonga até ás 9 ou 10 horas da manhã, havendo, contudo, ocasiões em que só finda ás duas ou três horas da madrugada, em virtude da pesca ter sido abundante. Logo que chega setembro e o tempo arrefece, os navios, fugindo ao inverno, recolhem aos portos de partida, onde chegam geralmente de meados de outubro a meados de novembro. Faz-se entào em terra a secagem do peixe, em estabelecimentos com instalações próprias, preparando-o convenientemente para o consumo. A secagem do bacalhau é uma operação delicada porque é preciso evitar a chuva, e ela se realisa justamente durante a estação invernosa o peixe recolhe-se quase sempre á tardinha para ser exposto novamente de manhã. É labuta que se prolonga por muitos meses, devendo estar concluída em fins de fevereiro, porque em março a temperatura já é muito mais elevada, facilitando a decomposição do peixe. Depois de seco vai para os armazéns de comércio onde o consumidor o procura com o interesse de um verdadeiro apreciador, e, sendo a entrada media anual de bacalhau no nosso país de 21 milhões de kilos, se computarmos o numero de famílias portuguesas em um milhão, achamos que meio kilo de bacalhau pelo menos entra na alimentação de cada família em cada semana!

A. Mesquita de Figueiredo

in Hemeroteca Digital de Lisboa - Illustração Portugueza nº368 – 10 mar. 19013




sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Descrição de Ílhavo em 1856 - Alfred Germond de Lavigne (1812-1896)

Alfred Germond de Lavigne (1812-1896) - Itinéraire descriptif, historique et artistique de lªEspagne et du Portugal, Paris : Hachette, 1856, p. 802.

- Le lac d'Aveiro a un commerce très-actif, et fait des exportations dan's les colonies. Ses marins sont audacieux et vont, sur de petits bâtiments, dans les plus lointaines contrées, où ils portent leurs marchandises, qu'ils échangent contre les productions de l'Afrique et même de l'Amérique. La pêche est pour les habitants une source importante de produit. 
Au midi du même lac est placée Ateiro, de 5,000 habitant, à environ 15 lieues nord-est de Coimbra.
Aveiro, dans l'antiquité, a porté les noms d'Averium et de Talabrica.
Cette ville a, sur la rive gauche et à l'embouchure du Vouga dans l'Atlantique, un port avantageusement situé, mais dangereux pour la navigation. Son entrée se compose de différentes passes qui changent à tous moments au gré des sables mouvants dont elle est couverte, et les bâtiments du commerce y échouent fréquemment.
On a construit un canal depuis la ville d'Aveiro jusqu'à cinq lieues dans les terres vers le nord; il sert au transport des grains el îles productions du paya que l'on vient embarquer dans le port. Aveiro esi le siège d'un évèché. Elle possède des marais salants, et fait la pèche des huîtres, des sardines, etc. 
Au dire d'un historien fort exact, "Aveiro a joui d'une haule réputation durant le XV et le XVIê siècle; on dit même que ses habitants purent armer jusqu'à soixante bâtiments four la pèche de Terre-Neuve;
malheureusementl'amoncellement des sables vint fermer son port magnifique, et l'on vit s'éteindre
graduellement cette haute prospérité, en même temps que le pava cessait d'être salubre et que la population s'amoindrissait. Apres d'immenses travaux, une nouvelle passe fut ouverte eu 1808, le pays
s'assainit ; niais sa population ne se releva pas, comme on l'espérait.
Aveiro, situé sur une espèce de péninsule, ayant au nord e vastes marais qui s'étendent jusqu'à neuf lieues parallèlement à la mer, a été quelquefois comparé à Venise, et le pays qui l'entoure s'est vu désigné sous le nom de Hollande portugaise."
L'écrivain qui fournil ces détails ajoute que six établissements spéciaux sont destinés à la pêche de la sardine. Les terres environnantes sont d'une fertilité prodigieuse; elles produisent en grande abondance des vins généreux que l'on reserve, pour la plupart, à l'Amérique.
S'il faut en croire une relation de voyage du duc du Chatelet, la ville d'Aveiro aurait, au milieu du XVIIIe siècle, changé son nom en celui de Nova Bragança. Voici à quel propos. Joseph Mascarenhas et Lancastre, duc d'Aveiro, avait été tout-puissant sous Jean V.
Mais il tomba en disgrâce sous Joseph I, en 1750. Alors, n'écoutant plus que son ressentiment, il ourdit contre le roi et son premier ministre, le marquis de Pombal, un complot qui eut un commencement d'exécution. Le 3 septembre 1758, les conjurés curent la certitude que le roi devait se rendre chez la jeune marquise de Távora, dans lavoiturede son confident Pedro Teixeira. L'assassinat fut résolu; et les conspirateurs s'éhclonnèrent de telle sorte que, dans le cas ou une tentative manquerait, la voiture devait être assailliedenouveau par des groupes apostés. La chose se passa d'abord ainsi que les conspirateurs l'avaient supposé. Comme le roi se rendait de ta Quinta de Meio, à une autre maison royale nommée Quinta da Cima, une carabine se leva contre le postillon: le chien s'abattit et le coup manqua. C'était, dit-on, le duc d'Aveiro qui, monté sur un cheval de louage, avait commencé l'attaque. Le zélé serviteur qui conduisait l'attelage sauva Joseph. "Que faites vous? c'est le roi, s'écria-t-il."
Puis il pressa ses mules do toute leur vitesse ; et, lorsque deux autres coups de carabine vinrent atteindre la voiture, l'équipage, qui fuyait au galop fut bientôt hors de la portée de deux cavaliers qui le suivaient. Cependant les armes étaient chargées a mitraille et le roi fut atteint (le deux graves blessures, qui enlevèrent les chairs depuis 1 épaule droite jusqu'au coude. Les coupables furent découverts, convaincus du crime de lèse-majesté et condamnés au feu. Le marquis de Pombal saisit cette occasion de porter un coup mortel à l'aristocratie portugaise, et il impliqua les jésuites dans le complot. Le duc d'Aveiro et le marquis de Távora eurent les membres brisés sur une croix (13 janvier 1759), et la ville perdit son nom qui lui fut rendu plus tard.

- Ilhavo, ville de 6,310 habitant s'élève à environ deux lieues sud
d'Aveiro et à trois lieues de l'océan Atlantique. Citer Ilhavo, c'est rappeler un établissement de haute utilité publique, dont Urcullu le géographe a seul fait mention jusqu'à présent. A la distance d'un quart de lieue de cette ville, on a établi la fabrique royale de verre et de porcelaine da Vista-Alegre. Cette belle manufacture, de fondation peu ancienne, employait naguère cent vingt-cinq personnes des deux sexes. Les apprentis destinés à fournir de nouveaux ouvriers à l'établissement suivent des cours basés sur le système de l'enseignement mutuel.
L'étude de la musique occupe une place importante dans cette éducation industrielle et tout a fait populaire. La haute direction des deux fabriques est confiée à un portugais de mérite. Vers 1840, c'était un français, qui surveillait toute la partie artistique. M. Rousseau s'occupait exclusivement des procéd´s relatifs à la peinture et à la sculpture. 
La taille du verre est arrivée, dans cette fabrique , à un tel degré de perfection, que, selon beaucoup e connaisseur spéciaux, on ne peut distinguer les produits de Vista-Alegre de ceux de la France et de l'Angleterre.
Ilhavo est une ville qui exploite de belles salines et qui fait le commerce de poisson.
Après Ilhavo, on peut s'arrêter quelques heures a Mira, ville assez importante, située sur le littoral, et possédant une population île 6,000 habitants.

- Mira renferme principalement des pêcheurs. Elle se trouve à environ 91 1/2 de Coimbra. Après avoir doublé le cap Mondego, qui s'élève a l'embouchure de la rivière du même nom, on fera une halte à Figueira.


Descrição de Ílhavo em 1865 - Richard Stephen Charnock (1820-1904)

Richard Stephen Charnock (1820-1904) - Bradshaw's illustrated hand-book to Spain and Portugal : a complete guide for travellers in the peninsula. - London : W. J. Adams, 1865, 220-221


'Proceeding abont 30 miles to the southward we come to the south end of this lagoon or lake on which is situated the town of Aveiro (population, 5.000); distant about 50 miles west of Coimbra) on the left bank of the Vouga river, at its junction with the oecan. 
It possesses a fine harbour; the entrance is dangerous on account of the constant shifting of the bar. During the fifteenth and sixteenth centuries, this town used to send to sea 60 fishing vessels which prosecuted successfully the fishery on the banks of Newfoundland. Unfortunatly for  the commerce of tho place the shifting sand blocked up their harhour and ruined their trade. The country is flat around, and the rebut of the lake giving inland navigation, gave it the name of the Holland of Portugal. Leaving this, and passing Ílhavo, a small town which exports quantities of salt collected on the beach, and a cousiderable quantity of cured fish, we arrive at Mira (populalion 6.000), after enjoying the gambols of the dolphins chassing the flying fish, which are numerous on the shores. Mira is a saline and fishing station of some importance.'



segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Histórias e Mistérios de Ílhavo: a bruxa de Ílhavo Ti Rita Quitéria











Luar de Setembro! Ouvem-se em Ílhavo as almas dos velhos pinheiros, que o vento do norte verga e agita donde sai, propagando-se até enormes distâncias, num murmurinho semelhante ao do mar longínquo em dia de tormenta!

Luar de Setembro! Desperta-se em nós a saudade desse formoso rincão tão perto do mar, minúsculo tapete bordado de infinita variedade de verdes, de claro, de escuro, de prateado, da gramata da ria!

Estamos a 29 de Setembro, dia de São Miguel, anjo que entregou ao profeta Daniel o significado de visões que antecipavam coisas futuras. A história que vamos contar ouvimos de um casal com muita idade, que junto de nós estava (podia ser no Festival Cabelos Brancos), e que entreolhando-se, sorriram. Docemente a velhinha reclinou a cabeça de neve sobre o peito do companheiro e este começou:

No lugar da Légua não havia rapariga mais linda do que a Luísa Bicuca, e no Casal não havia rapaz mais cantador e reinadio do que o Joaquim Felpas. O Felpas gostava da Bicuca, mas a Bicuca não gostava do Felpas. Num desafio, no dia da Senhora da Luz, o Felpas cantou-lhe:

Cantam nóras pelo campo 

O verdemilho a regar,

Deu a seca na minh'alma

Sem a luz do teu olhar,

A Bicuca respondeu-lhe :

Por mais voltas que tu dês

Aos alcatruzes da nóra

Hei de sempre responder-te

- Não te quero, vai-te embora!

Tempos decorreram. A Luísa Bicuca descera a lavar ao Rio da Páscoa, que lhe passava ao fundo da propriedade. Tirando do dedo um anel de oiro, pousou-o sobre uma pedra, e começou a lavar. Em dado momento quando a Bicuca estendia roupa sobre um silvado, alguém que a espreitava, aproximou-se rastejando por entre um milharal e guardou o anel, desaparecendo em seguida. Já meio-dia era passado quando a Luísa Bicuca acabara de lavar o rol. Ao procurar o anel para enfiar no dedo, o coração caíra-lhe aos pés. A linda prenda que a madrinha, quatro meses antes, lhe havia comprado na Feira de Março, desaparecera. E lá foi, rio abaixo, na meia curvatura de quem procura alguma coisa, não fosse o seu anel ter rolado com a corrente das águas. Assim andou até que, passadas as horas de sesta, lá foi para casa com o lindo olhar a embaciar-se-lhe de lágrimas, contando á mãe o sucedido. O anel nunca aparecera e a Bicuca, dali em diante, começou de ficar tão triste, tão triste e a perder o apetite, que em pouco tempo parecia desenterrada.

O seu olhar, dantes tão vivo e penetrante, tornou-se apagado e fixo como o dum carneiro mal morto. Mas a ti Luísa Vigária, madrinha da Bicuca, começou a ver naquilo arranjos de bruxedo.

— Nem que eu tenha de dar uma volta ao Inferno, hei de desembaraçar esta meada!

Escura como breu estava aquela noite em que a Bicuca, mãe e madrinha foram a Ílhavo consultar a bruxa que morava no Curtido. A Vigária, como mais afoita, foi quem expôs à feiticeira os pontos mais salientes do caso da afilhada.

— As cartas rezam tudo...— respondeu a bruxa.

Aninhadas todas as quatro á lareira, apenas alumiada pela escassa luz da candeia que pendia do cambeiro, a sorte começou. Logo às primeiras cartas se viu com grande clareza, pela perseguição que o conde fazia à sota (o valete à dama), que andava envolvido naquilo um homem que, não podendo conquistar ao bem o coração da Bicuca, procurava a todo o transe enfeitiçá-la!...

A espadilha, que veio logo depois, assim o confirmava! Era portanto um caso muito bicudo e que merecia um grande cogitar. Como a feiticeira precisava de ter conferências com o Diabo, prometeu uma resposta segura para dali a oito dias, marcando a meia-noite para comparecerem e recomendando um segredo absoluto. Na noite seguinte, em casa da mesma feiticeira, aparece um homem todo embuçado que lhe pergunta logo à entrada:

— Então Ti Quitéria?... - E a bruxa com ar de quem tudo descobriu:

— Adivinhei tudo, tudo! O anel que vossemecê achou, é duma bonita cachopinha da Légua, chamada Luísa Bicuca.

Aquela revelação, assim de chofre, o homenzinho, que não era outro senão o Felpas, ficou boquiaberto. E a bruxa, com um malicioso sorriso, adivinhando as intenções do Felpas, acrescentou:

— E gosta muito dessa cachopinha?

— É verdade, Ti Quitéria, mas...

— Mas ela não gosta de si, foi por isso que vossemecê cá trouxe o anel...

Tal adivinhar, fez ver ao Felpas o grande poder oculto daquela mulher e mais se convenceu quando ela lhe perguntou:

— E até se lhe não dava de casar com ela?

— Ah! que se vossemecê arranjasse isso, pagava-lho bem pago!

— Talvez se arranje...

— Ó Tia Rita Quitéria, nem que eu tenha de vender a terra do Choiso! Arranje-me isso que lho pagarei bem pago!...

— Pois vá com a Nossa Senhora e venha cá sexta-feira, ao dar da meia-noite.

Na torre da Igreja soam compassadamente as doze badaladas da meia-noite. A essa hora triste, três vultos caminham por Espinheiro, em direção à casa da bruxa. Esta, de ouvido à escuta, logo que ouve passos no beco, abriu a porta e as três criaturas entraram. Subjugadas pelos terrores secretos de quem vai ouvir uma sentença terrível, esperavam a palavra da bruxa que, com um ar cheio de mistério, lhes perguntou:

— Conhecem o Joaquim Felpas?

— Conhecemos, — respondem.

— Pois ele é que tem na mão a vida ou a morte desta menina!

— Jasus! Credo! – choramingou a Bicuca, lavada em lágrimas.

A bruxa continuou:

— O Felpas quer casar com ela. É o modo de a salvar.

Um grande silêncio abafado reinou durante alguns minutos, apenas entrecortado pelos soluços da Luísa. A bruxa, toda despenteada, dava aquele quadro tétrico, uma pavorosa e sombria cor.

— O anel desta pobre aqui veio ter por artes que só eu sei… Vê-de bem! Ele vai-se desgastando do mesmo modo que ela vai mirrando, até morrer! Enquanto o Felpas vivo for, ninguém terá o poder de lho tirar! Esse anel tem estado enterrado no cemitério dentro dum púcaro novo. Esse púcaro tem dentro um sapo macho, e na boca desse bicho, cosida com linha preta, é que o anel tem estado. Aí o mando, para a boca do sapo, que o não posso ter mais tempo em meu poder... — E a bruxa, atirando o anel para um buraco, ao canto do borralho, concluiu com grande prepotência:

— De duas uma: ou casar com o Felpas, ou morrer!!!

Uma lufada de vento que desceu pela chaminé, apagou a candeia! Estarrecidas de medo, as três mulherzinhas, desataram a gritar. Vizinhas, em trajes menores, julgando que era fogo, saltaram para o meio do beco. Em pouco tempo a rua de Espinheiro ficou em polvorosa. Esmiuçado o acontecimento, alguém afirmava ter visto o Diabo em forma de cavalo, galopando rua abaixo...

Poucas semanas depois a Ti Luísa Vigária procurou o Felpas para combinarem o casamento.

E o velho sorrindo e concluindo a história, disse-nos:

— O anel do feitiço é este que minha mulher tem no dedo.

— Então o sr. é…

— Eu sou o Joaquim Felpas e ela é a Luísa Bicuca.

E num transporte de candura, cingindo a companheira dos seus dias de encontro ao coração, disse:

— E creio que está para haver ainda casamento mais feliz, não é verdade, Luísa? -

E a velhinha aconchegada toda ao peito do marido disse, chorando de comoção:

— Abençoado feitiço!...

adaptado de João Teles, in jornal O Ilhavense, de 3 de Setembro de 1922.

quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Histórias e Mistérios de Ílhavo: lobisomens e promessa ao Senhor Jesus de Ílhavo










O Luís Bentevi (alcunha), era homem de alma ingénua, nascido e criado no meio piscatório que era Ílhavo de antanho. Sempre a ouvir do mulherio crédulo, lendas de espíritos malignos, casos estranhos de assombramento, correrias de lobisomens e aparecimentos de bruxas, respeitava, com terror supersticioso, todas as abusões, não gostando que o chalaceassem a esse respeito.

Se à noitinha via uma estrela cadente cruzar no espaço, erguia-se com respeito e pronunciava sempre a frase protetora: — «Deus te guie!» porque na sua crença, era uma alma desgarrada que procurava aflita o caminho do céu.

Não raro, a dormir já, estremecia na cama e acordava a mulher, aterrado, trémulo de medo:

—Eh! Luiza! Luiza! — ouvira o galope desabrido dum lobisomem, lá fora. — Que seria?

Escuta, Luiza! Acho que é um lobisomem!

—Tem juízo home, tem juízo... — dizia-lhe a mulher e, quedo e aconchegado ao corpo da esposa, ficava atento, balbuciando rezas.

No entanto, na vida arriscada da pesca, ninguém o tinha na conta de cobarde. Duma feita na Costa Nova, trabalhando na companha do «Galo Velho», fora ele que enfrentara o escrivão que armado de varapau, crescera arrogante para mais de vinte homens que reclamavam quinhões atrasados. Atraída pela discussão azeda dos dois, toda a companha se juntou em volta, esperando entre risonhos e comovidos, numa ansiedade mal contida, o desfecho daquela altercação que devia de ser terrível. Ninguém dava nada pelo Bentevi que á vista do outro era um cinco reis de gente. O próprio escrivão virou-lhe as costas num gesto de desprezo, mas o Bentevi avançando sobre ele, disse:

— Nem és homem, nem és nada! Se me tocasses, até te roía os fígados!

Aquela ameaça, o escrivão virou-se de frente, encarou o seu contendor e sorridente, certo da vitória, derreou o corpo de flanco, levantou no ar o pau com pontaria á cabeça do Bentevi. Ouve um sussurro de aplauso entre os partidários do escrivão. Súbito, porem, um grito partiu, e o escrivão, abaixando-se com ambas as mãos no ventre, continha o sangue que jorrava de uma larga e profunda ferida. Acudiram todos, alguns com pena, outros com satisfação, aplaudindo o salto ágil do Bentevi que, livrando-se da paulada certeira do seu inimigo, lhe cravara no ventre a lâmina duma faca.

À meia noite, para lá da Barra da Vagueira, o Bentevi recebia das mãos da esposa umas moedas e uma medalhinha que ela lhe dependurou ao pescoço, lavada em lágrimas:

— Adeus, homem!

— Adeus, mulher! Para onde eu for, de lá te mandarei notícias! E partiu fugido para o Brasil.

Havia mais de um ano que o Bentevi vivia em Santos num sítio em que ele exercia a profissão da pesca. Que terríveis noites não passava o desgraçado, pungido pelo remorso, a ouvir sempre o grito agudíssimo que o escrivão largara quando a faca lhe entrou no ventre! Sentia ainda na mão a tepidez do sangue que jorrara, em gorgolões do ventre da sua vítima. 

À noite, no rancho, depois que os camaradas recolhiam, as grandes sombras das árvores, ao pálido luar, tomavam formas espectrais que o amedrontavam. Figuravam-se-lhe braços ameaçadores, vultos embuçados que avançavam em passos subtis e parecia ouvir gritos, rumores de vozes ou lamentos doridos vindos do fundo da mata que negrejava para lá da casita.

— Que raio de vida esta, Senhor!... Perdoai-me Senhor Jesus, que eu já estou arrependido! E aquela mulher sem me responder, Senhor! Terá havido alguma desgraça?

Compungia-o a ideia de ter morto o escrivão. A mulher não lhe escrevera ainda, por isso não sabia se a sua vítima era deste mundo ou não. Uma tarde, em que ele viera a Santos, só pode regressar ao sitio, pela tarde da noite. Estava um esplêndido luar e a estrada do Cubatão, muito branca, insinuava-se pelo arvoredo e perdia-se nas sombras quietas. Era grande o silêncio e as sombras das árvores que se despejavam sobre a estrada, tornavam-na, por vezes, negra, mas logo adiante a lua reaparecia alumiando o caminho.

Ele caminhava a olhar o céu todo estrelado onde a lua brilhava. De repente, um grito silvou na mata. O Bentevi deteve o andar, olhando em roda. O luar cada vez mais brilhante, refletia na água quieta do rio que ladeava a estrada. Bentevi retomou o caminho, mas não havia dado dez passos quando, de novo, ecoou o mesmo, grito agudo que desta vez parecia proferir o nome dele: Bentevi!  O pescador sentiu um arrepio de medo e ficou a olhar, mas tudo era mato e sombra, nem vivaalma, nem uma luzinha dum rancho! Uma voz interior parecia dizer-lhe que não prosseguisse, mas ele dando mais uns passos ouviu novamente o mesmo grito agudo: Bentevi!

Estremeceu violentamente. Persignou-se e ficou preso á terra, agarrado ao solo como aquelas árvores frondosas que pareciam esconder o assombro. 

Uma ideia sinistra lhe veio aumentar o pavor. Seria um lobisomem? Seria a alma do escrivão? Levantou os olhos ao céu e uma estrela cadente riscou o espaço.

— «Deus te guie!

Seguidamente o mesmo grito lamentoso que parecia desferido por alguém que sofria: Bentevi!

Levou a mão à cinta e apertou a coronha da garrucha e, sacando-a para fora, levou-a à altura dos olhos e fez fogo ao acaso, Um grande estrondo ecoou no silêncio rolando trovejantemente. Bentevi!! Benteviii!!

Conjuntamente com estes gritos um ruflo de asas cortou o espaço sinistramente,

— Valha-me o Senhor Jesus de Ílhavo!

E com os dedos crispados, arrancou de sob o peito da camisa a medalhinha com a imagem do Senhor Jesus de Ílhavo que a mulher lhe pusera ao pescoço na noite da sua fuga. Segurando na mão fechada a pequenina medalha levantou ao ar o braço, como que a esconjurar o perigo e lá foi seguindo vagarosamente a estrada, ouvindo a voz ou ave agoirenta, pronunciar, já muito longe: Bentevi! Benteviiii!

Ao outro dia, dificilmente puderam convencer o pescador da existência nas matas brasileiras duma ave que canta pronunciando o seu verdadeiro nome: Bentevi!

Desanuviou-se a alma do nosso homem quando passado dois dias recebeu a primeira carta da mulher em que lhe dizia ... o escrivão escapou, mas agradece-o ao Senhor Jesus de Ílhavo a quem fiz a promessa, enquanto viva for, se o escrivão escapasse e tu chegasses a porto de salvamento, de ir todos os anos na procissão, vestida de Magdalena ... Nesse ano promoveram ao Senhor Jesus de Ílhavo, festa rija. É que dos Brasis chegará farta esmola e ordem expressa para que a função fosse de arromba.

João Teles, in jornal O Ilhavense
de 2 de Setembro de 1923.


quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Imagem de Nossa Senhora da Saúde da Costa Nova do Prado

 

In Invocações Marianas na Diocese de Aveiro, Pe. Domingos Rebelo, 1988

Calcário policromado

Capela da Costa Nova do Prado, Gafanha da Encarnação, século XVI (?)

66,5 alt x 24 larg cm

Capela do Cemitério da Gafanha da Encarnação 1932

 

in jornal O Ilhavense, nº945, 1 janeiro 1933

Gafanha da Encarnação - Benção da Capela do Cemitério

Dia 9 de Dezembro último. A manhã sempre serena e linda, parecendo associar-se, com tristeza de outono, ao ato que ali vai ter lugar. Pelas 8 horas sai da igreja matriz a Irmandade da Senhora da Encarnação com o reverendo Prior da freguesia, dois seminaristas e muito povo no coice (um cortejo caminhando no comprimento de dois quilómetros). Entra-se no cemitério! Amplo e belo campo santo, bem situado, longe da povoação, em lugar pitoreseo e alegre, mais parecendo um jardim-dormitório do que uma necrópole; um excepcional campo sagrado, sem aquele pesado aspecto lúgubre, tristonho, da maior parte dos cemitérios do país. Abre-se a capela das encomendações, concluida há poucos dias. À direita, uma sacristia e à esquerda, uma sala para autópsias.

Na tribuna, um Cristo agonizante, de tristes olhos para o chão, bela imagem do Senhor dos Aflitos, parecendo pedir dali misericórdia para os defuntos que entram naquele silêncio-eternidade.

Festa de Nossa Senhora do Carmo da Gafanha de 1932

 in jornal O Ilhavense, nº927, 21 agosto de 1932


Festas & Romarias: SENHORA DO CARMO

Hoje, festeja-se na Gafanha do Sul a imagem da Senhora do Carmo, a que assiste a Banda Bingre Canelensee a a Filarmónica Ilhavense. Como é o primeiro ano que se faz a festa, depois de construida a estrada daquele lugar, de esperar é que seja muito concorrida.

Roubo do espólio da Capela da Ermida em 28 Abril 1932

 in jornal O Ilhavense, nº911, 1 de maio de 1932

Roubo importante:

Na sexta-feira passada, à tarde, quando o sr. Joaquim Rezende, lavrador, do lugar da Carvalheira andava no cultivo de uma terra com ontras pessoas de sua familia, os gatunos, que ainda se não sabe quem sejam, entraram-lhe em casa e roubaram-lhe 3.800$00 em dinheiro, um cordão de ouro, uma corrente e 4 ligas do mesmo metal e 4 resplendores de prata da imagem da Senhora do Rosário da Ermida, de cuja confraria o sr. Rezende é tesoureiro. A autoridade administrativa procede às investigações.

sábado, 27 de maio de 2023

Parocos de Ílhavo: Pe. Diamantino Ribau (f. 1933)

 O Pe. Diamantino Ribau natural da Cale da Vila, Gafanha da Nazaré, Ílhavo faleceu com pouco mais de vinte anos. Foi pároco de Chãos (Tomar) e à data da morte em Fevereiro de 1933 era pároco de Amoreira da Gândara. Este jovem padre era sobrinho do Pe. José Maria Ribau, prior de Fermentelos e possuia invulgres faculdades de inteligencia, sendo um dos alunos mais distintos do seminário de Coimbra.

quinta-feira, 11 de maio de 2023

Coagitando: o roubo da lâmpada de Ílhavo

 in jornal 'O Ilhavense' de 1 de Julho de 1961

"Á santa ingenuidade do nosso povo
Ainda sobre o roubo da Lâmpada"

Ora tentemos pôr as coisas no seu devido lugar...
A lâmpada que o Sr. José Balde trouxe de Newark (América do Norte), oferta do sr. Vasco Jardim que a havia comprado  numa loja de um judeu que lhe afirmou ser a autêntica lâmpada
roubada, há 200 (?) anos da
igreja de Ílhavo, como é que teria
ido parar àquele país?
Cogitemos: há coisa de 36, representou-se em Ílhavo a
primeira revista para adultos, de
costumes de Ílhavo. Era protagonista
desse trabalho teatral, que
causou um sucesso enorme, o
«Francês das Notas» que veio visitar
à nossa terra. E foi ele, senhores,
que trouxe para Ílhavo a
lâmpada roubada há muitos anos.
Relembremos a cena respectiva:

3º ACTO:
CENA XLV
(Entram várias personagens com lanternas na mão, em camisa
de dormir, e em atitude de quem
procura alguma coisa)

FRANCÊS | (recuando amedrontado)
- Quem são aqueles fantasmas, sr Tinoco?

TINOCO - Os lâmpadas monsieur. são fogos fátuos à procura da lâmpada que há tempo nos roubaram.
FRANCÊS (aliviado) - Ah! Não ganhei para o susto (áparte) julguei que era outra vez a maldita 'caveira'.

TINOCO - Não se arreceie que não fazem mala ninguém.

OS LÂMPADAS (cantam):
Digam depressa
E sem demora
Se a nossa lâmpada
Já aqui mora. 
Ouvimos dizer
Mais de uma vez
Que quem a traz
É o «Francês».

Côro
Venham cá, venham cá
Venham todos procurar
Nossa lâmpada adorada
Que nos vieram roubar.
Há tanto ano
Que já lá vai
E não sabemos
Quem é seu pai.
E a brincadeira
Sem tom, nem graça
Foi repetida
Com a da Praça.

Côro

FRANCÊS
Vou-lhes fazer
Uma surpresa
Tomem a lâmpada (do teto desce uma lâmpada)
Limpa e acesa. 
Mandem dizer 
Para o Pará 
Que quem a trouxe
Foi cá moi.

OS LÂMPADAS (desatam à lâmpada e levam-na, cantando)
Vamos lá, vamos lá, 
É esta toda inteira,
Foi limpa e limpa está
Ai que lâmpada brejeira.
(Saem ao som da música)

Ora esta cena foi um delírio na plateia, e bisada umas poucas de vezes. A lâmpada, roubada (?) há quase dois séculos aparecia finalmente em Ílhavo, trazida pela mão do "Francês das Notas". Como se explica tal?
Julga-se que, quando da 3.º invasão francesa, em 1810, sob o comando do marechal Massena, aqueles tivessem assaltado a casa dos ladrões onde o precioso objeto estaria oculto há mais de 50 anos, e na sua retirada para França, após a bordoada que apanharam no Bussaco, a levassem para a França. Aí o "Francês das Notas" adquiriu-a por qualquer preço, num prestamista e sabendo da ansiedade que o povo de Ílhavo manifestava por reaver a 'lâmpada adorada', e como fosse convidado a visitar a nossa terra, fez a surpresa de a trazer, restituindo-a.

Mas então como apareceu ela agora na América? 
O caso deve explicar-se da seguinte maneira. Ao tempo do espetáculo da revista, há uns bons 36 anos, estavam cá uns poucos de luso-americanos que tinham vindo de visita a suas famílias. Um deles tinha emprestado, para representação do número 'Americano, um fato de cowboy que mandara para o teatro dentro de uma sua mala, Quando os figurantes da cena  'Os lâmpadas' entraram de rebolão na sala onde tinham que se vestir para a última cena, que era a apoteose final da revista, o que trazia a lâmpada atirou-se para a mala que o americano mandara para o teatro com o fato. Findo o espetáculo, aquele nosso conterrâneo foi buscar o que emprestara e levou-a para casa. Mas como no dia seguinte teve de sair para a América, levou, sem dar por isso, a lâmpada para aquele país.
Caladinho como um rato quando a descobriu, lá a foi conservando. Mas os portugueses atravessaram depois, ali, uma crise enorme. Os nossos homens estiveram desempregados algum tempo e o ilhavense amigo, numa hora de aperto, teve que utilizar o crédito de um prestamista judeu, deixando-lhe, como penhor, a lâmpada de Ílhavo que, sem concorrer para isso, lhe surgiu na américa.
E aí está explicada a razão por que o precioso objeto foi adquirido agora pelo sr. Vasco Jardim que a ofereceu ao sr. José Balde para a trazer para Ílhavo.

Para terminar estas notas e ainda como confirmação do que acima expomos, vamos ainda
transcrever da revista "Francês das Notas" parte da Cena seguinte aquela a que fizemos referência.
É o diálogo entre Tinoco e o Francês:

TINOCO - Oh! meu caro Francês!
Então estava tão caladinho com a surpresa que nos quis fazer? A nossa lâmpada! A nossa
querida lâmpada!
Mas diga-me, monsieur, como obteve esta preciosidade que há tantos anos era procurada com um afã, uma solicitude inaudita?

FRANCÊS - Foi o acaso que ma trouxe às mãos, meu caro Tinoco.

TINOCO - Conte-me lá isso, mon cher.

FRANCÊS - Quando saí de França, para empreender esta viagem, que tinha por objetivo
fazer a felicidade de Ílhavo, entrei casualmente num adelo que tinha, numa vitrina, esta lâmpada exposta com este letreiro: Preciosidade de Ílhavo (Vende-se).

TINOCO (interessado) - E depois?

FRANCÊS - Fiquei radiante e imediatamente a adquiri, protestando logo fazer-vos, com ela uma surpresa. Sabia que vos tinha sido roubada, por intermédio do antigo jornal "O Brado" que publicou um artigo intitulado: "Costumes e Gente de Ílhavo" e onde minuciosamente vinha descrito o descarado roubo. Agora aí a tendes. Não a deixeis 'limpar' de novo.

TINOCO - Oh! Isso nunca! Vai ser guardada num cofre forte com sentinela à vista. 
Obrigado, meu caro Francês. Prestou ao povo de Ílhavo um alto favor.

Mal diria o pobre do Tinoco, (papel desempenhado, com mestria, pelo nosso amigo sr. João Teles) que, no dia seguinte, já ninguém sabia novamente onde parava a lâmpada, ficando todos convencidos de que ela havia sido outra vez roubada.
Mas não! Foi, sim, conduzida por engano, numa mala, para a América do Norte, onde agora foi adquirida e de novo trazida para Ílhavo. 
A lâmpada! Símbolo da ingenuidade de um povo tão bom, que deixa envolver-se na corrente de uma lenda que é o paradigma da sua singeleza.


sábado, 18 de março de 2023

Histórias e Mistérios de Ílhavo: a quadrilha do Badaco


 A QUADRILHA DO BADACO - na vizinha Soza, o Badaco, o Marques e o Chantôrro cometeram a tentativa de assassínio do padre de Soza. O Badaco foi morto a tiro e enterrado no celeiro de Salgueiro

Foi no ano de 1850, época em que toda a Europa vivia harmoniosamente, que na vizinha Vila de Soza nasceu o Miguel Chantôrro, filho de um acérrimo partidário do estadista Mariano de Carvalho e que, no lugar do Boco, nasce igualmente uma criança descendente de uma família de apelido Marques e no lugar de Salgueiro, uma outra, descendente da família Badaco.

Estas três crianças, aí por 1859, frequentavam a escola da Vila de Soza, na qual era mestre o sr. padre José da Graça, conjuntamente com mais trinta companheiros da vila e suas vizinhanças. 

Os três tornaram-se em breve grandes amigos e camaradas. E com a idade, foi nascendo neles uma certa tendência para a maldade. E assim é que, nas horas de recreio, os três combinavam assaltos à quinta da Senhora Maia, desbastando árvores de fruto, talando campos, esgalhando árvores. 

Comandava esta pequena quadrilha, o mais esperto de todos - o Badaco – que à finura aliava a temeridade.

Um dia resolveram assaltar o estabelecimento da Sra. Maria Rodrigues, roubando-lhe 12 grosas de botões que depois vendiam aos condiscípulos para o jogo do Rapa. 

Sendo as queixas dos seus desacatos contínuas o bom do padre-mestre resolveu um dia expulsá-los da escola. 

E os três, já então rapazotes espigados, ouvindo contar as façanhas do Zé do Telhado, acordaram entre si imitar o famigerado salteador e, pelo escuro da noite, ei-los pelos caminhos de Salgueiro, Lavandeira, Ouca e Quintã, assaltando os transeuntes exigindo deles a bolsa ou a vida. 

Aproximava-se o tempo da Semana Santa, e os partidários de Mariano de Carvalho, formaram um “complot” contra o Reitor de Soza, José Pimentel de Quadros, natural de Vagos. Os políticos cada vez mais acesos, juraram guerra de morte ao bom Reitor. 

E para fazer desaparecer o pobre clérigo, foi convidado o Chantôrro, que devia praticar o crime na Sexta-feira Santa.

O atentado cometeu-se, de facto, recebendo o facínora, pelo seu gesto, 50 libras em ouro, e sendo o ato previamente festejado no lugar de Fareja, com um banquete em casa de João Estroina, inimigo figadal do Reitor, que escapou milagrosamente,

E assim naquela Sexta-feira, pelas 11 horas da noite, quando o Reitor de Soza, depois de ter assistido ao ofício das Trevas, se dirigia para sua casa que ficava ao fundo da rua dos Louros, hoje rua Dr. Brito, foi alvejado com um tiro de espingarda caçadeira, alojando-se-lhe a carga num ombro, mas não o matando.

No dia seguinte foram detidos vários indivíduos dentre os quais o Chantôrro. Mas como nada se pudesse provar contra eles, foram postos em liberdade. 

Livre o Chantôrro das consequências desta proeza, o Badaco, chefe da quadrilha, resolveu assaltar a vivenda do sr. padre José Ribeiro, na Lavandeira, caminho para Ílhavo, e assassinar o bom do padre. 

O assalto foi combinado para a noite de Natal. No dia 24 de Dezembro, pelas 12 horas, os bandidos dirigiram-se os três aquele lugar.

A noite estava fria e tenebrosa. O vento sibilava tragicamente. Os raios fuzilavam e o trovão ribombava. Os facínoras, que nada temiam, dirigiram-se para o sinistro cometimento.

Ao chegarem ao pinhal da Petronilha, que fica entre Salgueiro e Lavandeira, talvez acordados por algum remorso, discutiram entre si:

— E se não matássemos o bom do padre, que só nos tem feito bem? – disse o Marques.

— É verdade. Ainda há dias nos deu ceia a todos—repetiu Chantôrro.

— Está bem, respondeu o Badaco! Mas então vamos exigir-lhe que nos entregue 50 libras, para passarmos os dias de Natal.

— E quem havemos de mandar lá?

— A Moria Carvalha, que mora lá em baixo.

A Carvalha era uma infeliz mulher, que vivia num casinhoto miserável, ao fundo do lugar. Para lá se encaminharam os facínoras. E ao chegarem à vivenda da pobre mulher, perto das duas horas da madrugada, o Badaco aproximou-se de um postigo do velho pardieiro, batendo três fortes pancadas no janelo.

— Quem está aí?—preguntou a mulher cheia de medo.

— É o Badaco. Levanta-te que ninguém te faz mal.

A infeliz, mal agasalhada, tremendo como varas verdes, veio à fala com os criminosos.

E estes depois de a peitarem a ir entregar ao sr. padre José uma carta, em que lhe exigiam a entrega de 50 libras, foram aguardar o resultado do atrevido lance para o pinhal da Petronilha.

Não sabemos o que se passou entre a Carvalha e o sr. padre José Ribeiro. Mas o que é verdade é que dai a pouco, estavam os três criminosos a repartir entre si a produto do seu roubo, tendo dado 5 libras à Carvalha. E dessa data em diante o sr. Padre José Ribeiro, sentia-se ocultamente protegido, pois nunca mais lhe aconteceu mal algum, até ao final da sua vida.

Não ficou por aqui, porém, a atuação da quadrilha do Badaco. 

Certa noite os meliantes resolveram assaltar uma casa de Ouca. Pela chaminé dessa casa desceu o Marques, na intenção de abrir as portas aos companheiros que estavam do lado de fora. Deu-se, porém, o caso, de na cozinha estar ainda a tratar da comida para os suínos, uma criada da casa, que vendo descer pela chaminé o intruso, se agarrou a ele, lutando e gritando.

Da refrega saiu a pobre mulher ensopada em sangue. Mas o Marques, que fora o atrevido salteador, teve de abrir apressadamente a porta da cozinha é dar às de Vila Diogo, com os companheiros, que aguardavam lá fora que ele lhes desse o sinal da entrada.

Foram todos presos, mas negaram o crime, e de novo gozaram a liberdade. 

Passou-se algum tempo em que se não falou de mais assaltos da quadrilha. Jugava o povo que eles se tinham arrependido do mau caminho que trilhavam.

Puro engano. Os três miseráveis, deram mas é outra faceta aos seus malévolos intentos. E percorrendo todas as feiras do distrito, aplicavam a sua atividade no lucrativo negócio de carteiristas. Ora, no dia 21 de Setembro de certo ano, regressava a tripeça da feira da Oliveirinha, onde haviam feito boa colheita.

Chegados ao lugar das Quintãs entraram na taberna de um tal Polónio, e, demorando-se ali até à 1 hora da madrugada, resolveram assaltar nessa noite a casa da Chorinca, viúva de um rico proprietário dali. Pelas 2 horas da madrugada, por meio de chaves falsas, penetraram no palacete da viúva, donde roubaram joias no valor de 20 contos.

Pressentidos, porém, pelos criados, são por estes perseguidos e pelo povo, que acorreu as gritos de socorro, até ao lugar de Salgueiro, onde o Badaco é alvejado por 2 tiros de espingarda, por Pedro da Rocha, de Mira, mas ao tempo criado dos Gama, sendo morto e sepultado próximo do celeiro daquele lugar. O Marques e o Chantôrro, que eram os condutores das joias, conseguiram escapar à perseguição e dirigiram-se, pelo Porto de Ílhavo, lugar que fica entre Salgueiro e Nariz, para Tentúgal, onde chegaram pelas 10 horas da manhã.

Como nesse dia se realizasse naquele lugar um importante mercado, os dois assaltantes procuraram vender as joias, com 50% a menos do seu valor, a um joalheiro de Coimbra, de nome Ferraz, que desconfiando da fartura, comunicou o caso às autoridades que não tardaram a prender os dois patifes e a conduzi-los à Penitenciaria daquela cidade, donde saíram mais tarde, numa leva em que ia o José do Telhado, para as costas de África, donde nunca mais voltaram.

O celeiro de Salgueiro


quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

A Procissão das Cinzas em Ílhavo

(in jornal 'O Nauta', 28 de Fevereiro de 1942)

"Do templo paroquial desta Vila saiu no último domingo a procissão das Cinzas em que foram incorporados seis andores ostentando as belas imagens da Virgem (do Tadim)*, São Francisco de Santa Clara, da rainha Santa Isabel, Santo Ivo e da Ordem. Assistiram as duas filarmónicas da terra - a ‘velha’ e a ‘nova’ - que executaram marchas sentimentais entre elas a maravilhosa marcha fúnebre de Bernardo Pinto Camelo - Dor d'Alma - que também foi executada pela filarmónica da Vista Alegre no funeral da saudosa esposa do ilustre diretor técnico da fábrica da Vista Alegre."

*curiosa referencia à Virgem da Imaculada Conceição da autoria de Guilherme Thedim, ao culto na Igreja paroquial de Ílhavo.

(in jornal 'O Nauta', 27 de Março de 1943)

No domingo imediato à quarta-feira de Cinzas, saiu desta Igreja Matriz de Ílhavo a majestosa procissão de Cinzas, incorporando as piedosas imagens de Santo Ivo, São Francisco e Santa Clara, maravilhas da arte dos ilhavenses Anselmo Ferreira, Manuel Paes Guerra e Gabriel Pereira da Bela (o Sardinheira).

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

História e Mistérios de Ílhavo: o fantasma da Rua Nova


Turismo 
dark é um termo utilizado para definir o turismo a lugares que possuem alguma relação com a morte (reais ou recriados), com o sofrimento, com a desgraça ou, de alguma forma, macabros.

Fotografia de José Fernandes Mano Agualusa,
Rosália Theodora Rainha e filhas Dorinda
 e Dárida habitantes na Casa da Rua Nova














Com o objetivo de criar em Ílhavo uma rota ou percurso para os entusiastas destas questões (morte, mortos-vivos, assassinos, ladrões, fantasmas, bruxas, lobisomens, sereias, e vampiros) relembramos a história do Fantasma da Rua Nova em Ílhavo, atual Rua João Carlos Gomes, noticiada no jornal 'O Ilhavense' de 17 de Março de 1929, descrito como a Casa Sinistra. A casa é hoje o restaurante Casa Velha do Hotel Ílhavo Plaza.

"É de há muito voz corrente por Ílhavo de que, em certa casa da Rua Nova, se vêm produzindo determinados acontecimentos de caráter estranho e até mesmo sobrenatural.

Convém, no entanto, informar o leitor que a casa em referência é um prédio de construção moderna, desse tipo característico que o urbanismo local criou entre nós de há vinte anos para cá (1929), e de que bastante se tem abusado: casa térrea rematada por mirante em chalé; grande porta central encimada pelo emblema náutico em granito, platibanda em balaústres, revestimento de azulejos, etc. A disposição interna é sabida: corredor central com aposentos laterais.

Circunda o prédio, um magnífico quintal, com lindas vistas para as vessadas, ribeiros e águas glaucas da ria, a que dá ingresso um amplo portão gradeado.

Como vê o leitor, não se trata de qualquer castelo roqueiro de tradições medievais ou solar bafiento e arcaico perdido em ermo serrano beirão, onde, em remotas eras, se tenha desenrolado alguma tragédia amorosa afogada em sangue por vingança cruel, sobre o qual a maldição de Deus e dos homens tenha caído implacável, fazendo sofrer, pelos seus desertos e sinistros salões sempre cerrados á luz criadora do dia, a alma penada de algum castelão ou gentil homem enganado e traído...

Nada disso!

O cenário é de hoje, os personagens são contemporâneos e bem conhecidos. Casa moderna, em rua alegremente ruidosa, é habitada de aluguer por uma família respeitável, cujas filhas, duma requintada distinção e risonha mocidade, lhe emprestam vida elegante, é feliz, perfumada, pelas rosas. e jacintos do seu jardim ...

Os aposentos, onde os factos estranhos se sucedem, decorados com arte rafinée, onde brilham lindos trabalhos de arte moderna aplicada, são alegres, inundados de luz, com um amoroso ambiente de conforto e distinção.

O corredor central!... Não; paremos aqui ... No entanto digamos apenas ... O corredor central, escasso de luz, frio no mosaico do seu piso, pesado na escariola embaciada das suas paredes, tem um ar triste, carregado, pressagiento ... E tem ele sido o teatro fatídico dos acontecimentos!... Deixemo-lo em paz, no nosso relato, se paz é possível existir ali...

Ora, até nós, chegara a informação de que há dias qualquer facto anormal se dera na fatídica casa da Rua Nova.

— Procure você a senhora (A), que algo poderá dizer-lhe! - disse-nos pessoa amiga.

Assim fizemos, neste justificado desejo de bem, informar os nossos leitores. A reportagem moderna impõe deveres e obrigações a que o jornalista não pode fugir. Dirigimo-nos, por isso, a casa da senhora (A) que mora ao fundo de um beco convergente da Rua Direita.

Era domingo, razão porque ela não fôra, como de costume, estar fora, granjeando honradamente a vida pelo trabalho. Fomos encontrá-la dando volta e arrumação à sua modesta, mas limpa e asseada casinha térrea de pobre. Sacudia o pó de alguns singelos móveis e ajeitava interessantes bibelôs que adornam a sala. Pelas paredes, brancas de jaspe, alguns quadros e pratos de decorações artísticas, e um sem número de policromos calendários reclames, dispostos com amorosa arte. Sobre uma coluna um solitário esfíngico, oferece-nos o perfume inebriante dum ramo de violetas e miosótis. Bendita seja a casa dos pobres onde reina a ordem e a limpeza...

 Desculpe-nos, minha senhora, se viemos interrompê-la no arranjo do seu ninho...

— Ora essa.. esteja à sua vontade. O que me quer?

—  Apenas que nos diga alguma coisa sobre o que presenciou há dias na casa da Rua Nova

— Oh! Por quem é não me avive semelhante facto Não sabe o quanto me faz sofrer. Meu Deus, meu Deus, não me abandoneis! Não, não! Deixe-me, por quem é; deixe em sossego o meu coração e os meus nervos! O que eu sofri, e o que eu tenho sofrido ultimamente!

E caiu semi-desfalecida sobre uma cadeira, ocultando o rosto nas suas finas e brancas mãos num gesto aflitivo de quem pretende evitar, ante os seus olhos mortificados, nova aparição do agoirento fantasma. Todo o seu corpo vibrava tremendo, imprimindo desencontrados movimentos á cadeira em que se apoiava. Era confrangedor e atemorizante, fazendo-nos vacilar no prosseguimento do nosso interrogatório. 

Procurámos animá-la.

— Então, então, tenha calma, sossegue, não vê que está em sua casa?

Voltou a si num gesto indeciso e cansado. Estava branca de neve, os olhos semicerrados, profundos e humedecidos. Sacudiu com abandono a sua cabeça de contornos impecáveis, abriu desmedidamente a sua boca outrora tão linda, e num grande hausto, respirando fundo, cobrou alento, enquanto ia limpando a fronte onde marinhavam contas de suor frio. 

E murmurou, então, num brando e rendido cicio:

— Eu costumo ir trabalhar para essa casa de quando em vez: pontear roupa, passar a ferro, etc. Estava, por isso, lá na quarta-feira última. O dia, triste é chuvoso, decorrera sem incidente, Mas, quase ao anoitecer, começámos a sentir em toda a casa um barulho inexplicável seguido dum bater forte de portas. Notei o facto, sendo-me dito pela filha mais velha da casa que não fizesse caso, porque isso era costume suceder não sabendo explicar a razão disso. Convém notar que no prédio só estávamos nós as duas e uma pequena vizinha. Não havia vento e todas as portas exteriores estavam fechadas.

— Onde trabalhavam? — interrogámos.

— No segundo compartimento da casa, ao lado nascente, que comunica com o corredor central. A certa altura, uma mesa que estava ao centro do aposento, começou agitando-se fortemente. Como sobre ela estava uma jarra de valor, avisei a dona da casa do risco que ela corria. Mas, nesse instante, a porta que dá para o corredor — oh, o fatídico e sinistro corredor! — abriu-se lentamente e, no seu limia, surgiu um vulto alto, espectral, envolto em roupagens brancas de longa cauda, olhos fixos em nós, agitando os braços lugubremente, e soltando um ruido estranho com o matraquear agoirento dos seus enormes dentes!... Avançava para nós a longas passadas, com riso satânico e petrificante evolvendo-lhe o rosto...

A aparição maldita quase nos tolheu os movimentos e fez emudecer. Eu, extremamente nervosa, agarrei-me com fúria á minha companheira que, transida de susto, me dizia a medo: 

— Largue-me, pelo amor de Deus, que quero fugir e não posso...

Eu, baixinho, atrapalhadamente, murmurava:

— Oh, alma minha não temas, vive constante na fé, que Jesus contigo é! Jesus! Jesus! Jesus!

Mas, num repelão violento, as minhas companheiras puderam fugir indo fechar-se na sala de jantar. Vendo-me só, ganhei forças e abalei também alcançando o quintal onde, abrindo o portão, gritei aflitivamente para a rua:

— Aqui d'el-rei! Acudam! Acudam!

Juntou-se gente, toda a vizinhança, que percorrendo a casa, nada encontrou. Apenas na sala de jantar as duas pequenas que ali se haviam refugiado, agarradas uma à outra gritavam, também, desesperadamente. De novo a nossa entrevistada se abandonou sobre um modesto divã, cansada, exausta por completo de forças, pelo relato dado que, avivando-lhe a estranha cena, fizera vibrar de novo os seus nervos.

Retirámo-nos agradecendo e cogitando maduramente sobre o que acabáramos de ouvir, contado com uma firmeza, sinceridade e ar de convicção, que fortemente nos impressionam. Como explicam os homens de ciência estes acontecimentos? Nós, não lhe fazemos comentários, limitando-nos ao simples relato dos factos que têm sido o assunto palpitante dos últimos dias na nossa terra."

Casa da Rua Nova (Rua João Carlos Gomes), Restaurante Casa Velha, 108, Ílhavo