Nós, portugueses, manifestámos sempre grande predileção pelo nosso fiel amigo: o bacalhau, e, talvez, por via dele, iniciámos as amistosas relações diplomáticas com a nessa fiel aliada: a lnglaterra!
Com efeito, no meado do seculo XIV, as cidades de Lisboa e Porto celebraram, com Eduardo III de Inglaterra, o importante tratado de 20 de outubro de 1353, que estabelecia, durante cincoenta anos, o direito recíproco de pesca nas costas de Portugal, da Inglaterra e da Bretanha, que nessa epoca estava sob o domínio inglês. Ora, sendo o bacalhau uma espécie que se encontra em alguns pontos da costa ingleza, é possivel que já nessa epoca os portugueses se dedicassem à sua pesca nessas paragens, ao abrigo desse celebre tratado.
As trágicas viagens dos Corte Reaes, nos primeiros anos do seculo XVI, tiveram como consequência o descobrimento da Terra Nova dos Baralhacaus, como lhes chamam os documentos, em cujos bancos iniciámos desde logo as pescarias. D. Manuel, em 1506, por alvará de 14 de outubro, dirigido a Diogo Brandão, manda que este faça arrecadar para o Real Erário o dízimo do pescado da Terra Nova, que entrava pelos portos da província de Entre Douro e Minho. Em 1520, o mesmo rei faz a doação ao fidalgo minhoto João Alvares Fagundes dessas terras, e foi em virtude desta doação que, entre aquele ano e o de 1525, se estabeleceu na Terra Nova, com gente de Viana do Castelo, Aveiro e da Terceira, a celebre colónia do Cabo Brandão.
Desenvolve-se então extraordinariamente a pesca do bacalhau, havendo notícias de serem armados para ela grande numero de barcos nos portos de Viana e Aveiro. As guerras da rainha lsabel e dos holandeses contra a Espanha, em tempo de Filipe II, afugentaram os portugueses e espanhois dos bancos da Terra Nova, mas já em 1578, diz Packhurst, o número de navios portugueses que a ela se dedicavam não era superior ao dos navios ingleses, e, segundo o testemunho de Forster, em 1598, ainda lá mandavamos umas cincoenta embarcações.
No período da decadência, abandonámos por completo esta pescaria, sendo nela substituídos pelos ingleses e franceses, que por muito tempo debateram os seus direitos sobre ela em melindrosa e prolongada questão diplomática, a que só há poucos anos pôs termo o acordo de 8 de abril de 1904, uma das bases da entente cordiale entre as duas nações.
Só mais tarde, já no século XIX, a Companhia Lisbonense de Pescarias fez renascer, entre nós, esta indústria, chegando a obter bons proventos nos anos de 1841 e 1842. Segue-se novo período de decadência até que a Companhia liquidou em 1857. Deste ano até 1882 a exploração foi completamente nula: de 1883 a 86 fazem-se novas tentativas, armando-se alguns barcos, o máximo 14, nos portos de Lisboa, Porto, Viana e Açores.
Em agosto de 1885 levantataram-se dúvidas na alfandega de Lisboa sobre se ao bacalhau pescado por navios portugueses devia aplicar-se o imposto geral do pescado ou a taxa de 33,5 réis por kilo da pauta geral em vigor, chegando-se à conclusão, depois de muitas reclamações, como diz a célebre portaria de 14 de abril de 1886, que sobre o valor declarado do bacalhau pescado em tais condições fosse cobrado apenas o imposto do pescado, 6,6 % ad valorem e respetivos adicionais, ficando, porém, a pesca limitada aos navios que no ano de 1885 andassem empregados nela! E sendo esses navios apenas doze, a este número teve de restringir-se daí em diante a indústria portuguesa! Manteve-se este estado de coisas até 1901 em que, a instâncias da Associação Comercial de Lisboa, a quem a benemérita Liga Naval deu todo o seu patriótico apoio, o parlamento votou a lei de 12 de junho daquele ano, que sujeita ao imposto de 12 réis por kilo o bacalhau fresco, em salmoura ou simplesmente salgado, pescado por navios portugueses com tripulação completamcnte portuguesa: voltáramos ao regimen equalitativo da liberdade de pesca, acabando de vez com um monopólio odioso, mantido ao abrigo de uma simples portaria! Quais os benefícios efeitos de um tal regimen, eles são bem patentes nos ótimos resultados que acusa o extraordinario progresso desta indústria nos ultimos anos. As estatisticas de 1902 a 1910 mostram uma media geral de 18 embarcações que pescaram 3:724 toneladas, no valor de 223:556 contos de réis anualmente. Mas os resultados resaltam ainda com maior eloquência se examinarmos os progressos da indústria local na Figueira da Foz: em 1901-1902, três navios apenas pescaram 517:330 kilos de peixe com o valor de 41:386$000 réis, aumentando sempre progressivamente o numero de embarcações e o produto da pesca que, em 1911, empregou 13 navios que pescaram 2.120:263 kilos, com o valor de 212:026$300 réis, oferecendo uma ótima remuneração ao capital empregado. Em 1912, Portugal mandou á Terra Nova 34 navios, foi o maximo até hoje atingido. Tem, pois, esta industria sempre constantemente progredido, e conta um larguíssimo futuro, sendo, dentro em pouco tempo, uma das mais prosperas do nosso depauperado organismo económico. Os navios que se destinam á pesca do bacalhau largam, em geral, dos portos portugueses em principios de maio, singrando com rumo aos Açores, e, chegados á vista daquelas ilhas navegam então a oestenoroeste até ao grande banco, que está situado ao sueste da ilha da Terra Nova, á distância de umas 25 léguas, tendo mais de 200 leguas de comprimento por 60 de largo, com fundo desde 20 até 76 braças. O navio fundeia logo que chega ao banco e o prumo acusa fundo de 25 a 30 braças, mas o fundeadouro não é fixo, deslocando-se geralmente o barco do sul para o norte durante a temporada da pesca. Arreiam-se então os dóris, as embarcações de que se servem os pescadores: são pequenos barcos de construção americana, cujo comprimento varia entre 4 e 5 metros, o fundo é chato e fusiforme, a borda bastante inclinada para fora, a roda de proa e a popa com bastante caimento também para fora, sem bancadas fixas. Cada um destes barcos é tripulado por um homem que usa na pesca a linha de mão, e todos se espalham em torno do navio, fundeando á distância de meia até uma milha. Preparadas as linhas, o pescador larga-as uma para cada lado do dóri e espera, de pé, que o peixe pique. Logo que o barco está carregado regressa a bordo, começando geralmente a faina ás 5 horas da manhã, atracando ao navio cerca do meio dia, para voltar á uma hora para o mar, dando finalmente por concluído o trabalho da pesca ao pôr do sol. Segue-se depois a escala e salga do peixe, que usualmente se prolonga até ás 9 ou 10 horas da manhã, havendo, contudo, ocasiões em que só finda ás duas ou três horas da madrugada, em virtude da pesca ter sido abundante. Logo que chega setembro e o tempo arrefece, os navios, fugindo ao inverno, recolhem aos portos de partida, onde chegam geralmente de meados de outubro a meados de novembro. Faz-se entào em terra a secagem do peixe, em estabelecimentos com instalações próprias, preparando-o convenientemente para o consumo. A secagem do bacalhau é uma operação delicada porque é preciso evitar a chuva, e ela se realisa justamente durante a estação invernosa o peixe recolhe-se quase sempre á tardinha para ser exposto novamente de manhã. É labuta que se prolonga por muitos meses, devendo estar concluída em fins de fevereiro, porque em março a temperatura já é muito mais elevada, facilitando a decomposição do peixe. Depois de seco vai para os armazéns de comércio onde o consumidor o procura com o interesse de um verdadeiro apreciador, e, sendo a entrada media anual de bacalhau no nosso país de 21 milhões de kilos, se computarmos o numero de famílias portuguesas em um milhão, achamos que meio kilo de bacalhau pelo menos entra na alimentação de cada família em cada semana!
A. Mesquita de Figueiredo
in Hemeroteca Digital de Lisboa - Illustração Portugueza nº368 – 10 mar. 19013