segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Histórias e Mistérios de Ílhavo: a bruxa de Ílhavo Ti Rita Quitéria











Luar de Setembro! Ouvem-se em Ílhavo as almas dos velhos pinheiros, que o vento do norte verga e agita donde sai, propagando-se até enormes distâncias, num murmurinho semelhante ao do mar longínquo em dia de tormenta!

Luar de Setembro! Desperta-se em nós a saudade desse formoso rincão tão perto do mar, minúsculo tapete bordado de infinita variedade de verdes, de claro, de escuro, de prateado, da gramata da ria!

Estamos a 29 de Setembro, dia de São Miguel, anjo que entregou ao profeta Daniel o significado de visões que antecipavam coisas futuras. A história que vamos contar ouvimos de um casal com muita idade, que junto de nós estava (podia ser no Festival Cabelos Brancos), e que entreolhando-se, sorriram. Docemente a velhinha reclinou a cabeça de neve sobre o peito do companheiro e este começou:

No lugar da Légua não havia rapariga mais linda do que a Luísa Bicuca, e no Casal não havia rapaz mais cantador e reinadio do que o Joaquim Felpas. O Felpas gostava da Bicuca, mas a Bicuca não gostava do Felpas. Num desafio, no dia da Senhora da Luz, o Felpas cantou-lhe:

Cantam nóras pelo campo 

O verdemilho a regar,

Deu a seca na minh'alma

Sem a luz do teu olhar,

A Bicuca respondeu-lhe :

Por mais voltas que tu dês

Aos alcatruzes da nóra

Hei de sempre responder-te

- Não te quero, vai-te embora!

Tempos decorreram. A Luísa Bicuca descera a lavar ao Rio da Páscoa, que lhe passava ao fundo da propriedade. Tirando do dedo um anel de oiro, pousou-o sobre uma pedra, e começou a lavar. Em dado momento quando a Bicuca estendia roupa sobre um silvado, alguém que a espreitava, aproximou-se rastejando por entre um milharal e guardou o anel, desaparecendo em seguida. Já meio-dia era passado quando a Luísa Bicuca acabara de lavar o rol. Ao procurar o anel para enfiar no dedo, o coração caíra-lhe aos pés. A linda prenda que a madrinha, quatro meses antes, lhe havia comprado na Feira de Março, desaparecera. E lá foi, rio abaixo, na meia curvatura de quem procura alguma coisa, não fosse o seu anel ter rolado com a corrente das águas. Assim andou até que, passadas as horas de sesta, lá foi para casa com o lindo olhar a embaciar-se-lhe de lágrimas, contando á mãe o sucedido. O anel nunca aparecera e a Bicuca, dali em diante, começou de ficar tão triste, tão triste e a perder o apetite, que em pouco tempo parecia desenterrada.

O seu olhar, dantes tão vivo e penetrante, tornou-se apagado e fixo como o dum carneiro mal morto. Mas a ti Luísa Vigária, madrinha da Bicuca, começou a ver naquilo arranjos de bruxedo.

— Nem que eu tenha de dar uma volta ao Inferno, hei de desembaraçar esta meada!

Escura como breu estava aquela noite em que a Bicuca, mãe e madrinha foram a Ílhavo consultar a bruxa que morava no Curtido. A Vigária, como mais afoita, foi quem expôs à feiticeira os pontos mais salientes do caso da afilhada.

— As cartas rezam tudo...— respondeu a bruxa.

Aninhadas todas as quatro á lareira, apenas alumiada pela escassa luz da candeia que pendia do cambeiro, a sorte começou. Logo às primeiras cartas se viu com grande clareza, pela perseguição que o conde fazia à sota (o valete à dama), que andava envolvido naquilo um homem que, não podendo conquistar ao bem o coração da Bicuca, procurava a todo o transe enfeitiçá-la!...

A espadilha, que veio logo depois, assim o confirmava! Era portanto um caso muito bicudo e que merecia um grande cogitar. Como a feiticeira precisava de ter conferências com o Diabo, prometeu uma resposta segura para dali a oito dias, marcando a meia-noite para comparecerem e recomendando um segredo absoluto. Na noite seguinte, em casa da mesma feiticeira, aparece um homem todo embuçado que lhe pergunta logo à entrada:

— Então Ti Quitéria?... - E a bruxa com ar de quem tudo descobriu:

— Adivinhei tudo, tudo! O anel que vossemecê achou, é duma bonita cachopinha da Légua, chamada Luísa Bicuca.

Aquela revelação, assim de chofre, o homenzinho, que não era outro senão o Felpas, ficou boquiaberto. E a bruxa, com um malicioso sorriso, adivinhando as intenções do Felpas, acrescentou:

— E gosta muito dessa cachopinha?

— É verdade, Ti Quitéria, mas...

— Mas ela não gosta de si, foi por isso que vossemecê cá trouxe o anel...

Tal adivinhar, fez ver ao Felpas o grande poder oculto daquela mulher e mais se convenceu quando ela lhe perguntou:

— E até se lhe não dava de casar com ela?

— Ah! que se vossemecê arranjasse isso, pagava-lho bem pago!

— Talvez se arranje...

— Ó Tia Rita Quitéria, nem que eu tenha de vender a terra do Choiso! Arranje-me isso que lho pagarei bem pago!...

— Pois vá com a Nossa Senhora e venha cá sexta-feira, ao dar da meia-noite.

Na torre da Igreja soam compassadamente as doze badaladas da meia-noite. A essa hora triste, três vultos caminham por Espinheiro, em direção à casa da bruxa. Esta, de ouvido à escuta, logo que ouve passos no beco, abriu a porta e as três criaturas entraram. Subjugadas pelos terrores secretos de quem vai ouvir uma sentença terrível, esperavam a palavra da bruxa que, com um ar cheio de mistério, lhes perguntou:

— Conhecem o Joaquim Felpas?

— Conhecemos, — respondem.

— Pois ele é que tem na mão a vida ou a morte desta menina!

— Jasus! Credo! – choramingou a Bicuca, lavada em lágrimas.

A bruxa continuou:

— O Felpas quer casar com ela. É o modo de a salvar.

Um grande silêncio abafado reinou durante alguns minutos, apenas entrecortado pelos soluços da Luísa. A bruxa, toda despenteada, dava aquele quadro tétrico, uma pavorosa e sombria cor.

— O anel desta pobre aqui veio ter por artes que só eu sei… Vê-de bem! Ele vai-se desgastando do mesmo modo que ela vai mirrando, até morrer! Enquanto o Felpas vivo for, ninguém terá o poder de lho tirar! Esse anel tem estado enterrado no cemitério dentro dum púcaro novo. Esse púcaro tem dentro um sapo macho, e na boca desse bicho, cosida com linha preta, é que o anel tem estado. Aí o mando, para a boca do sapo, que o não posso ter mais tempo em meu poder... — E a bruxa, atirando o anel para um buraco, ao canto do borralho, concluiu com grande prepotência:

— De duas uma: ou casar com o Felpas, ou morrer!!!

Uma lufada de vento que desceu pela chaminé, apagou a candeia! Estarrecidas de medo, as três mulherzinhas, desataram a gritar. Vizinhas, em trajes menores, julgando que era fogo, saltaram para o meio do beco. Em pouco tempo a rua de Espinheiro ficou em polvorosa. Esmiuçado o acontecimento, alguém afirmava ter visto o Diabo em forma de cavalo, galopando rua abaixo...

Poucas semanas depois a Ti Luísa Vigária procurou o Felpas para combinarem o casamento.

E o velho sorrindo e concluindo a história, disse-nos:

— O anel do feitiço é este que minha mulher tem no dedo.

— Então o sr. é…

— Eu sou o Joaquim Felpas e ela é a Luísa Bicuca.

E num transporte de candura, cingindo a companheira dos seus dias de encontro ao coração, disse:

— E creio que está para haver ainda casamento mais feliz, não é verdade, Luísa? -

E a velhinha aconchegada toda ao peito do marido disse, chorando de comoção:

— Abençoado feitiço!...

adaptado de João Teles, in jornal O Ilhavense, de 3 de Setembro de 1922.