Luar
de Setembro! Desperta-se em nós a saudade desse formoso rincão tão perto do mar,
minúsculo tapete bordado de infinita variedade de verdes, de claro, de escuro, de
prateado, da gramata da ria!
Estamos a 29 de Setembro, dia de São Miguel, anjo que entregou ao profeta Daniel o significado de visões que antecipavam coisas futuras. A história que vamos contar ouvimos de um casal com muita idade, que junto de nós estava (podia ser no Festival Cabelos Brancos), e que entreolhando-se, sorriram. Docemente a velhinha reclinou a cabeça de neve sobre o peito do companheiro e este começou:
No lugar da Légua não havia rapariga mais
linda do que a Luísa Bicuca, e no Casal não havia rapaz mais cantador e
reinadio do que o Joaquim Felpas. O Felpas gostava da Bicuca, mas a Bicuca não
gostava do Felpas. Num desafio, no dia da Senhora da Luz, o Felpas cantou-lhe:
Cantam nóras pelo campo
O verdemilho a regar,
Deu a seca na
minh'alma
Sem a luz do
teu olhar,
A Bicuca
respondeu-lhe :
Por mais voltas
que tu dês
Aos alcatruzes
da nóra
Hei de sempre
responder-te
- Não te quero, vai-te embora!
Tempos
decorreram. A Luísa Bicuca descera a lavar ao Rio da Páscoa, que lhe passava ao
fundo da propriedade. Tirando do dedo um anel de oiro, pousou-o sobre uma
pedra, e começou a lavar. Em dado momento quando a Bicuca estendia roupa sobre
um silvado, alguém que a espreitava, aproximou-se rastejando por entre um
milharal e guardou o anel, desaparecendo em seguida. Já meio-dia era passado
quando a Luísa Bicuca acabara de lavar o rol. Ao procurar o anel para enfiar no
dedo, o coração caíra-lhe aos pés. A linda prenda que a madrinha, quatro meses
antes, lhe havia comprado na Feira de Março, desaparecera. E lá foi, rio abaixo,
na meia curvatura de quem procura alguma coisa, não fosse o seu anel ter rolado
com a corrente das águas. Assim andou até que, passadas as horas de sesta, lá foi
para casa com o lindo olhar a embaciar-se-lhe de lágrimas, contando á mãe o
sucedido. O anel nunca aparecera e a Bicuca, dali em diante, começou de ficar tão
triste, tão triste e a perder o apetite, que em pouco tempo parecia desenterrada.
O seu olhar, dantes tão vivo e penetrante, tornou-se apagado
e fixo como o dum carneiro mal morto. Mas a ti Luísa Vigária, madrinha da
Bicuca, começou a ver naquilo arranjos de bruxedo.
— Nem que eu tenha de dar uma volta ao Inferno, hei de
desembaraçar esta meada!
Escura como breu estava aquela noite em que a Bicuca, mãe e
madrinha foram a Ílhavo consultar a bruxa que morava no Curtido. A Vigária,
como mais afoita, foi quem expôs à feiticeira os pontos mais salientes do caso
da afilhada.
— As cartas rezam tudo...— respondeu a bruxa.
Aninhadas todas as quatro á lareira, apenas alumiada pela
escassa luz da candeia que pendia do cambeiro, a sorte começou. Logo às
primeiras cartas se viu com grande clareza, pela perseguição que o conde fazia à
sota (o valete à dama), que andava envolvido naquilo um homem que, não podendo conquistar
ao bem o coração da Bicuca, procurava a todo o transe enfeitiçá-la!...
A espadilha, que veio logo depois, assim o confirmava! Era
portanto um caso muito bicudo e que merecia um grande cogitar. Como a
feiticeira precisava de ter conferências com o Diabo, prometeu uma resposta segura
para dali a oito dias, marcando a meia-noite para comparecerem e recomendando
um segredo absoluto. Na noite seguinte, em casa da mesma feiticeira, aparece um
homem todo embuçado que lhe pergunta logo à entrada:
— Então Ti Quitéria?... - E a bruxa com ar de quem tudo
descobriu:
— Adivinhei tudo, tudo! O anel que vossemecê achou, é duma bonita
cachopinha da Légua, chamada Luísa Bicuca.
Aquela revelação, assim de chofre, o homenzinho, que não era
outro senão o Felpas, ficou boquiaberto. E a bruxa, com um malicioso sorriso,
adivinhando as intenções do Felpas, acrescentou:
— E gosta muito dessa cachopinha?
— É verdade, Ti Quitéria, mas...
— Mas ela não gosta de si, foi por isso que vossemecê cá trouxe
o anel...
Tal adivinhar, fez ver ao Felpas o grande poder oculto
daquela mulher e mais se convenceu quando ela lhe perguntou:
— E até se lhe não dava de casar com ela?
— Ah! que se vossemecê arranjasse isso, pagava-lho bem pago!
— Talvez se arranje...
— Ó Tia Rita Quitéria, nem que eu tenha de vender a terra do Choiso! Arranje-me isso que lho pagarei bem pago!...
— Pois vá com a Nossa Senhora e venha cá sexta-feira, ao dar da
meia-noite.
Na torre da Igreja soam compassadamente as doze badaladas da
meia-noite. A essa hora triste, três vultos caminham por Espinheiro, em direção à casa da bruxa. Esta, de ouvido à escuta, logo que ouve passos no beco, abriu a
porta e as três criaturas entraram. Subjugadas pelos terrores secretos de quem
vai ouvir uma sentença terrível, esperavam a palavra da bruxa que, com um ar
cheio de mistério, lhes perguntou:
— Conhecem o Joaquim Felpas?
— Conhecemos, — respondem.
— Pois ele é que tem na mão a vida ou a morte desta menina!
— Jasus! Credo! – choramingou a Bicuca, lavada em lágrimas.
A bruxa continuou:
— O Felpas quer casar com ela. É o modo de a salvar.
Um grande silêncio abafado reinou durante alguns minutos, apenas
entrecortado pelos soluços da Luísa. A bruxa, toda despenteada, dava aquele
quadro tétrico, uma pavorosa e sombria cor.
— O anel desta pobre aqui veio ter por artes que só eu sei…
Vê-de bem! Ele vai-se desgastando do mesmo modo que ela vai mirrando, até
morrer! Enquanto o Felpas vivo for, ninguém terá o poder de lho tirar! Esse
anel tem estado enterrado no cemitério dentro dum púcaro novo. Esse púcaro tem
dentro um sapo macho, e na boca desse bicho, cosida com linha preta, é que o
anel tem estado. Aí o mando, para a boca do sapo, que o não posso ter mais
tempo em meu poder... — E a bruxa, atirando o anel para um buraco, ao canto do borralho,
concluiu com grande prepotência:
— De duas uma: ou casar com o Felpas, ou morrer!!!
Uma lufada de vento que desceu pela chaminé, apagou a
candeia! Estarrecidas de medo, as três mulherzinhas, desataram a gritar. Vizinhas,
em trajes menores, julgando que era fogo, saltaram para o meio do beco. Em
pouco tempo a rua de Espinheiro ficou em polvorosa. Esmiuçado o acontecimento, alguém
afirmava ter visto o Diabo em forma de cavalo, galopando rua abaixo...
Poucas semanas depois a Ti Luísa Vigária procurou o Felpas para
combinarem o casamento.
E o velho sorrindo e concluindo a história, disse-nos:
— O anel do feitiço é este que minha mulher tem no dedo.
— Então o sr. é…
— Eu sou o Joaquim Felpas e ela é a Luísa Bicuca.
E num transporte de candura, cingindo a companheira dos seus dias de encontro ao coração, disse:
— E creio que está para haver ainda casamento mais feliz, não
é verdade, Luísa? -
E a velhinha aconchegada toda ao peito do marido disse, chorando
de comoção:
— Abençoado feitiço!...
adaptado de João Teles, in jornal O Ilhavense, de 3 de Setembro de 1922.