Em tributo ao meu bisavô, Capitão Francisco dos Santos Cálão,
ao bisavô da Marlene, Manuel Rodrigues da Paula e aos que deram a sua vida ao mar!
Dedicado aos nossos filhos, Zé Miguel, João Pedro e Leonor
Ílhavo, terra de marinheiros e pescadores de bacalhau! Homens de fé que, fazendo igreja dos seus barcos, lugres e dóris, sulcaram um oceano de tormentas e naufrágios em busca do sustento dos filhos e mulheres que por eles rezavam junto da imagem do Senhor Jesus dos Navegantes na igreja de Ílhavo, o seu cantinho natal.
Hoje, embora apartados dessa dura e inimaginável realidade, tentaremos dar testemunho do quão extenuante seria um dia de pesca de um pescador de linha, desde os "Louvados" (invocação religiosa com que se faz o despertar), até que, vencido pela fadiga e pelo sono, cairia no beliche para descansar umas escassas horas (três ou quatro nas vinte e quatro) retemperando forças para recomeçar luta idêntica no dia seguinte.
Lugre Santa Izabel, foto MMI |
Imaginemo-nos então na década de 30, vendo a tripulação a bordo de um lugre bacalhoeiro (neste caso, e por sentimento familiar de imaginação, a bordo do navio Santa Izabel, para a campanha de 1937, conduzida pelo meu bisavô Francisco e onde curiosamente o bisavô da minha mulher também embarcou como pescador) - um total de 50 homens: capitão, imediato, piloto, motorista, ajudante de motorista, pecadores de 1.ª, 2.ª e 3.ª linha, pescadores, moços, verdes, escaladores, salgadores, cozinheiro e demais trabalhadores do bacalhau.
A madrugada, límpida e calma, é prometedora de um bom dia de pesca no Virgin Rocks (o Grande Banco, plataforma da Terra Nova).
Entremos! Mal pomos o pé a bordo ouvimos o vigia que grita em voz forte os "Louvados":
Seja louvado e adorado Nosso Senhor Jesus Cristo! Olha que são quatro horas!! Ó mestre! Dê o almoço aos homens! (Muitos dão os Louvados cantando).
Logo todos se levantam e, depois de prontos, encaminham-se para a mesa; comida a refeição a hora tão matutina, vão receber o isco para os anzóis, que varia entre sardinha, cavala ou lula; vestem os fatos de oleado compostos das seguintes peças: calça, ou saia, casaco, botas de borracha de cano até à coxa, e na cabeça enfiam o sueste. (- o chapéu de oleado assim chamado por se usar contra a chuva que vem da direção do mesmo nome.)
Em seguida, o cozinheiro dá a cada um a aviação (- merenda) para todo o dia: peixe frito, pão, um barril de água, e alguns mais felizes levam consigo aguardente sua, se a têm, metendo tudo isto no foquim. (- a vasilha própria para levar a comida semelhante aos tarros do Alentejo)
A companha (- tripulação) vai-se juntando no convés para o mata-bicho distribuído por um moço: um bom cálice de forte aguardente a cada um. Calçando luvas de lã (- luvas especiais só com um dedo, o polegar, e uma espécie de saco para os restantes dedos de modo a que, em contacto direto uns com os outros aqueçam mais rapidamente), dirigem-se então para junto dos dóris empilhados no convés, e começam a arrear, isto é, a ir para o mar. O capitão a uma borda do navio, o imediato a outra, vão arreando os botes, cada qual com o respetivo pescador dentro.
Ao ser arreado à água o pescador descobre-se do sueste e diz com todo o respeito e muita fé, benzendo-se alguns:
Ora bamos lá com Deus!
No dóri (-do inglês dory), toda a palamenta, ou estrafego está em ordem: foquim com a aviação; a vela enrolada num pequeno mastro desmontável; o ferro de ancoradouro; o rodo ou corda do ferro; dois riles (- do inglês reel) que é um aparelho de madeira com punhos para o fácil manejo das linhas, cada um com a sua linha enrolada e a sua zagaia ou chumbada na extremidade, sendo usada uma ou outra se o peixe exige, ou não, o isco; um bartedouro para escoar a água do dóri; um búzio para chamar em caso de perigo; agulha de marear; dois desembuchadores, ou paus com meia braça de comprido que servem para tirar o anzol do bucho do bacalhau quando este engole o isco; balde para escoar a água e que às vezes é aproveitado para deitar nele o isco tirado do peixe pescado; roleto para alar o ferro; duas forquetas; dois remos; um cesto para o trole (- conjunto de 12 linhas, ou mais, com 50 braças cada uma e para cima de 600 anzóis distanciados uns dos outros cerca de uma braça, nome que vem do inglês trawl); finalmente uma linha com 50 braças para a baliza, ou boia, com o seu grampolim. (do inglês grapnel, um pedaço de ferro ou chumbo com 5 a 6 quilos e que é lançado ao fundo do mar.)
Remando, ou com a vela içada se está vento de feição, o homem do dory navega na direção em que o seu palpite lhe diz haver peixe. Chegada a altura em que lhe parece própria, arreia o pano e começa a pesada tarefa de largar o trole. Lança a baliza à água exclamando:
Vai na hora e no nome de Deus!
E começa a remar até que a linha da baliza fique bem esticada, e, feito isto, mete os remos dentro, largando o grampolim que prenderá a baliza no fundo do mar, segurando sempre no mesmo sítio. Começa então a iscar anzol por anzol, que vai deitando à água, deslizando o dóri à rola, conforme o vento. Largada a última das linhas, amarra a extremidade ao próprio ferro do bote e espera o tempo que lhe parecer suficiente, consoante a abundância de peixe. E neste momento está a cerca de 1700 metros da boia e a 10 milhas, ou mais, do seu navio.
Entretanto, enquanto espera, para não arrefecer e aproveitar o tempo, enfia as nepas (- espécie de ligas largas de borracha que protegem as mãos e evitam que as linhas as firam e magoem), desenrola as linhas dos riles e começa a zagaiar, operação que consiste em largar na água a zagaia até uma braça de fundo, e depois fazê-la subir e descer verticalmente cerca de dois metros, num movimento rápido de frente para trás.
A zagaia é um pedaço de chumbo com 25 cm de comprimento, brilhante, de forma oblonga, sustentando dois anzóis em baixo em forma de fateixa. E o bacalhau, que é um peixe extremamente voraz, ao ver o chumbo a brilhar e a mexer, abocalha-o julgando ser alimento. Tanto basta para ser fisgado pelos anzóis grossos da arma que o seduziu. Entre a zagaia e a linha à ainda um engenho de ferro de nome suevo (- do inglês swivel) e que serve para evitar que as linhas se distorçam.
Passadas umas horas com o trole na água, o pescador começa a pesada tarefa de o alar. Recolhe as linhas palmo a palmo, desembaraça o peixe dos anzóis, e o trole vai entrando no cesto, ficando disposto circularmente com os anzóis para dentro.
Ao apanhar o primeiro peixe, solta a mesma invocação bela, mas agora, como acto de grato reconhecimento:
Graças a Deus que já me estreei!!
Os anzóis que ficaram sem isco são iscados de novo, e o bacalhau vai enchendo os dóris. Se o peixe pescado cobre só o lugar ocupado pelo balde, é peixe a balde, ou um quintal; se chega à altura da sarreta, é peixe à sarreta, ou quintal e meio; a ré cheia é peixe à ré, ou dois quintais; a ré cheia e ainda algum à proa, é peixe à proa, ou dois quintais e meio; bote carregado são três quintais e meio a quatro; fundo tapado é o mesmo dez quilos; jaja tapada representa um quintal.
Se encheu o bote e ainda ficou por alar parte do trole, vai a bordo levar o bacalhau pescado e volta ao local onde tem o aparelho para terminar a recolha da pesca; se não carregou o dóri, dá nova trolada ali mesmo ou em sítio diferente. E assim todo o dia, até que o capitão faça a chamada; bandeira içada no topo do mastro.
Por vezes o trole não apanha só bacalhau; pesca também guelhas ou tubarões. E é perigosa a recolha desses animais! Ao vê-los, o pescador toma o remo e brande-o, com força e ódio, contra o seu maior inimigo, por lhe destroçar as linhas, comer e afugentar a pesca, além do perigo que representa para o próprio homem voltando-lhe o bote. E locais há ainda em que, se a recolha do trole for demorada, pode cair em cima do bacalhau preso aos anzóis uma multidão fantástica de pulgas do mar que comem o bacalhau em poucas horas, deixando apenas as espinhas.
Vendo a bandeira da chamada, todos os homens começam a dirigir-se para o navio. É quase sempre ao pôr-do-sol, mas têm ainda muito que fazer antes que se possam deitar!
Depois de longas horas a pescar no dóri, o pescador tem mais umas horas de jornada de trabalho a escalar e a salgar bacalhau. Este acréscimo de tarefas ao trabalho no dóri deixa o pescador exausto no final da jornada. Conforta-o uma chora (-caldo de cabeça de bacalhau) e pão e depois o escasso tempo de descanso.
Para hoje não há mais e amanhã Deus dará!
Pois logo mais, nova jornada intensa de trabalho se perspetiva. Os "Louvados" vão voltar com o amanhecer enevoado e frio da Gronelândia.
O lugre Santa Izabel naufragou a 22 de outubro de 1958 por água aberta na viagem de regresso dos bancos da Terra Nova.
Francisco dos Santos Calão - CAMPANHAS/NAVIOS - Águia (1921); Silvina; Rosita; Santa Izabel (1936-37); Santa Joana (1938-46); São Gonçalinho (1948-53)
Manuel Rodrigues da Paula - CAMPANHAS/Navios - 1º Primeiro Navegante (1943); Alan Villiers (1955-58). http://homensenaviosdobacalhau.cm-ilhavo.pt/header/diretorio/showppl/818
Hugo Cálão - Ílhavo, 20 de Dezembro de 2020