domingo, 20 de dezembro de 2020

Contributos para a religiosidade marítima em Ílhavo - Ora Bamos lá com Deus!

Em tributo ao meu bisavô, Capitão Francisco dos Santos Cálão, 
ao bisavô da Marlene, Manuel Rodrigues da Paula e aos que deram a sua vida ao mar!
Dedicado aos nossos filhos, Zé Miguel, João Pedro e Leonor 

Ílhavo, terra de marinheiros e pescadores de bacalhau! Homens de fé que, fazendo igreja dos seus barcos, lugres e dóris, sulcaram um oceano de tormentas e naufrágios em busca do sustento dos filhos e mulheres que por eles rezavam junto da imagem do Senhor Jesus dos Navegantes na igreja de Ílhavo, o seu cantinho natal.

Hoje, embora apartados dessa dura e inimaginável realidade, tentaremos dar testemunho do quão extenuante seria um dia de pesca de um pescador de linha, desde os "Louvados" (invocação religiosa com que se faz o despertar), até que, vencido pela fadiga e pelo sono, cairia no beliche para descansar umas escassas horas (três ou quatro nas vinte e quatro) retemperando forças para recomeçar luta idêntica no dia seguinte.
Lugre Santa Izabel, foto MMI


Imaginemo-nos então na década de 30, vendo a tripulação a bordo de um lugre bacalhoeiro (neste caso, e por sentimento familiar de imaginação, a bordo do navio Santa Izabel, para a campanha de 1937, conduzida pelo meu bisavô Francisco e onde curiosamente o bisavô da minha mulher também embarcou como pescador) - um total de 50 homens: capitão, imediato, piloto, motorista, ajudante de motorista, pecadores de 1.ª, 2.ª e 3.ª linha, pescadores, moços, verdes, escaladores, salgadores, cozinheiro e demais trabalhadores do bacalhau.

A madrugada, límpida e calma, é prometedora de um bom dia de pesca no Virgin Rocks (o Grande Banco, plataforma da Terra Nova).

Entremos! Mal pomos o pé a bordo ouvimos o vigia que grita em voz forte os "Louvados":

Seja louvado e adorado Nosso Senhor Jesus Cristo! Olha que são quatro horas!! Ó mestre! Dê o almoço aos homens! (Muitos dão os Louvados cantando).

Logo todos se levantam e, depois de prontos, encaminham-se para a mesa; comida a refeição a hora tão matutina, vão receber o isco para os anzóis, que varia entre sardinha, cavala ou lula; vestem os fatos de oleado compostos das seguintes peças: calça, ou saia, casaco, botas de borracha de cano até à coxa, e na cabeça enfiam o sueste. (- o chapéu de oleado assim chamado por se usar contra a chuva que vem da direção do mesmo nome.)

Em seguida, o cozinheiro dá a cada um a aviação (- merenda) para todo o dia: peixe frito, pão, um barril de água, e alguns mais felizes levam consigo aguardente sua, se a têm, metendo tudo isto no foquim. (- a vasilha própria para levar a comida semelhante aos tarros do Alentejo)

A companha (- tripulação) vai-se juntando no convés para o mata-bicho distribuído por um moço: um bom cálice de forte aguardente a cada um. Calçando luvas de lã (- luvas especiais só com um dedo, o polegar, e uma espécie de saco para os restantes dedos de modo a que, em contacto direto uns com os outros aqueçam mais rapidamente), dirigem-se então para junto dos dóris empilhados no convés, e começam a arrear, isto é, a ir para o mar. O capitão a uma borda do navio, o imediato a outra, vão arreando os botes, cada qual com o respetivo pescador dentro. 
Ao ser arreado à água o pescador descobre-se do sueste e diz com todo o respeito e muita fé, benzendo-se alguns: 

Ora bamos lá com Deus!

No dóri (-do inglês dory), toda a palamenta, ou estrafego está em ordem: foquim com a aviação; a vela enrolada num pequeno mastro desmontável; o ferro de ancoradouro; o rodo ou corda do ferro; dois riles (- do inglês reel) que é um aparelho de madeira com punhos para o fácil manejo das linhas, cada um com a sua linha enrolada e a sua zagaia ou chumbada na extremidade, sendo usada uma ou outra se o peixe exige, ou não, o isco; um bartedouro para escoar a água do dóri; um búzio para chamar em caso de perigo; agulha de marear; dois desembuchadores, ou paus com meia braça de comprido que servem para tirar o anzol do bucho do bacalhau quando este engole o isco; balde para escoar a água e que às vezes é aproveitado para deitar nele o isco tirado do peixe pescado; roleto para alar o ferro; duas forquetas; dois remos; um cesto para o trole (- conjunto de 12 linhas, ou mais, com 50 braças cada uma e para cima de 600 anzóis distanciados uns dos outros cerca de uma braça, nome que vem do inglês trawl); finalmente uma linha com 50 braças para a baliza, ou boia, com o seu grampolim. (do inglês grapnel, um pedaço de ferro ou chumbo com 5 a 6 quilos e que é lançado ao fundo do mar.)


Remando, ou com a vela içada se está vento de feição, o homem do dory navega na direção em que o seu palpite lhe diz haver peixe. Chegada a altura em que lhe parece própria, arreia o pano e começa a pesada tarefa de largar o trole. Lança a baliza à água exclamando: 

Vai na hora e no nome de Deus!

E começa a remar até que a linha da baliza fique bem esticada, e, feito isto, mete os remos dentro, largando o grampolim que prenderá a baliza no fundo do mar, segurando sempre no mesmo sítio. Começa então a iscar anzol por anzol, que vai deitando à água, deslizando o dóri à rola, conforme o vento. Largada a última das linhas, amarra a extremidade ao próprio ferro do bote e espera o tempo que lhe parecer suficiente, consoante a abundância de peixe. E neste momento está a cerca de 1700 metros da boia e a 10 milhas, ou mais, do seu navio.
Entretanto, enquanto espera, para não arrefecer e aproveitar o tempo, enfia as nepas (- espécie de ligas largas de borracha que protegem as mãos e evitam que as linhas as firam e magoem), desenrola as linhas dos riles e começa a zagaiar, operação que consiste em largar na água a zagaia até uma braça de fundo, e depois fazê-la subir e descer verticalmente cerca de dois metros, num movimento rápido de frente para trás.

A zagaia é um pedaço de chumbo com 25 cm de comprimento, brilhante, de forma oblonga, sustentando dois anzóis em baixo em forma de fateixa. E o bacalhau, que é um peixe extremamente voraz, ao ver o chumbo a brilhar e a mexer, abocalha-o julgando ser alimento. Tanto basta para ser fisgado pelos anzóis grossos da arma que o seduziu. Entre a zagaia e a linha à ainda um engenho de ferro de nome suevo (- do inglês swivel) e que serve para evitar que as linhas se distorçam.

Passadas umas horas com o trole na água, o pescador começa a pesada tarefa de o alar. Recolhe as linhas palmo a palmo, desembaraça o peixe dos anzóis, e o trole vai entrando no cesto, ficando disposto circularmente com os anzóis para dentro.
Ao apanhar o primeiro peixe, solta a mesma invocação bela, mas agora, como acto de grato reconhecimento:

Graças a Deus que já me estreei!!

Os anzóis que ficaram sem isco são iscados de novo, e o bacalhau vai enchendo os dóris. Se o peixe pescado cobre só o lugar ocupado pelo balde, é peixe a balde, ou um quintal; se chega à altura da sarreta, é peixe à sarreta, ou quintal e meio; a ré cheia é peixe à ré, ou dois quintais; a ré cheia e ainda algum à proa, é peixe à proa, ou dois quintais e meio; bote carregado são três quintais e meio a quatro; fundo tapado é o mesmo dez quilos; jaja tapada representa um quintal.


Se encheu o bote e ainda ficou por alar parte do trole, vai a bordo levar o bacalhau pescado e volta ao local onde tem o aparelho para terminar a recolha da pesca; se não carregou o dóri, dá nova trolada ali mesmo ou em sítio diferente. E assim todo o dia, até que o capitão faça a chamada; bandeira içada no topo do mastro. 
Por vezes o trole não apanha só bacalhau; pesca também guelhas ou tubarões. E é perigosa  a recolha desses animais! Ao vê-los, o pescador toma o remo e brande-o, com força e ódio, contra o seu maior inimigo, por lhe destroçar as linhas, comer e afugentar a pesca, além do perigo que representa para o próprio homem voltando-lhe o bote. E locais há ainda em que, se a recolha do trole for demorada, pode cair em cima do bacalhau preso aos anzóis uma multidão fantástica de pulgas do mar que comem o bacalhau em poucas horas, deixando apenas as espinhas.

Vendo a bandeira da chamada, todos os homens começam a dirigir-se para o navio. É quase sempre ao pôr-do-sol, mas têm ainda muito que fazer antes que se possam deitar!
Depois de longas horas a pescar no dóri, o pescador tem mais umas horas de jornada de trabalho a escalar e a salgar bacalhau. Este acréscimo de tarefas ao trabalho no dóri deixa o pescador exausto no final da jornada. Conforta-o uma chora (-caldo de cabeça de bacalhau) e pão e depois o escasso tempo de descanso. 
Santa Isabel, gesso policromado, Igreja paroquial de Ílhavo
Santa Isabel, c. 1935
gesso policromado,
Igreja paroquial de Ílhavo

Para hoje não há mais e amanhã Deus dará! 

Pois logo mais, nova jornada intensa de trabalho se perspetiva. Os "Louvados" vão voltar com o amanhecer enevoado e frio da Gronelândia.

O lugre Santa Izabel naufragou a 22 de outubro de 1958 por água aberta na viagem de regresso dos bancos da Terra Nova. 

Francisco dos Santos Calão - CAMPANHAS/NAVIOS - Águia (1921); Silvina; Rosita; Santa Izabel (1936-37); Santa Joana (1938-46); São Gonçalinho (1948-53)

Manuel Rodrigues da Paula - CAMPANHAS/Navios - 1º Primeiro Navegante (1943); Alan Villiers (1955-58). http://homensenaviosdobacalhau.cm-ilhavo.pt/header/diretorio/showppl/818 



Hugo Cálão - Ílhavo, 20 de Dezembro de 2020

domingo, 6 de dezembro de 2020

Os ex-votos "perdidos" da Igreja de Ílhavo

 Em 1937 Diniz Gomes, quase que antevendo o descaminho e volatilidade a que o património religioso das nossas igreja está sujeito, descreveu em listagem detalhada 22 dos 24 ex-votos pintados que existiam na parede lateral do altar do Senhor Jesus dos Navegantes da Igreja Matriz de Ílhavo.

Dos 24 mencionados, então, sobrevivem hoje no espólio da Igreja Paroquial de Ílhavo 19, descritos em 2007 na publicação, Senhor Jesus dos Navegantes- Mar e devoção.

Hoje, na esperança de que alguém possa informar do paradeiro dos cinco desaparecidos publicamos a listagem e fotografia dos "perdidos"!

Agradecemos a quem nos faça chegar informações, histórias e fotografias antigas dos ex-votos outrora existentes na parede lateral do altar do Senhor Jesus dos Navegantes de Ílhavo.

"Dão-se alvíssaras!"


Ex-votos em falta do Senhor Jesus dos Navegantes da Igreja de São Salvador de Ílhavo:

1 - Ex-voto Senhor Jesus dos Navegantes / Chalupa Patriota

(subscrição: Oflréçe este Cuadro ao S.re Jesus João Simões Chuva i seu Cunhado Julio Antonio da Silva. i a Mais tripulação. ass: H. B. Praça)

2 - Ex-voto Senhor Jesus dos Navegantes / Barca Glama

(subscrição: José da Costa Carolla Offerece ao Senhor Jesus a Barca «Glama» em promessa. ass: Mathias)

3 - Ex-voto Senhor Jesus dos Navegantes / Barca Glama

(subscrição: Offerece a tripulação da Glama)

4 - Ex-voto Senhor Jesus dos Navegantes / Hiate Grande Batista

(subscrição: Millagre que fez o Senhor Jezus á tripulação do Hiate Grande Batista no dia 20 de Dezembro de 1869. Estando no mar de baixo uma grande tempestade na Latit. 41-40 N. e Long. de 9-53, pediram ao Senhor Jesus que os livrasse da morte e os levasse a porto de salvamento, e logo d'ahi a pouco virou o vento, o foram caminho de Lisboa aonde entraram no dia 22 do mesmo mez, a salvam.to)

5 - Ex-voto Senhor Jesus dos Navegantes / Hiate Conceição de Aveiro

(subscrição: Hiathe Conceição d'Aveiro − Offerecido por José Marques ao Snr. Jesus)

Ver + em: http://ww3.aeje.pt/avcultur/Avcultur/ArkivDtA/Vol03/Vol03p117.htm

Hugo Cálão, 06 Dez 2020

Na foto ex-voto em falta.
Fotografia de 1972 representado ex-voto de um vapor, em falta, .