sábado, 30 de maio de 2020

A Virgem da Penha de França da Vista Alegre de Ílhavo

Partilho convosco a comunicação feita em 21-04-2018 sobre a Igreja da Vista Alegre de Ílhavo e o culto à Virgem da Penha de França pois muitos desconhecem o porquê da sua construção e dedicação.

Lisboa dedicou à Virgem da Penha de França (ou a Virgem de Simão Vela) uma das sua mais magníficas igrejas após a famosa batalha de Alcácer-Quibir, quando perdemos D. Sebastião, e após a pandemia da peste assolar Portugal em 1569, visto a vizinha Espanha se ter livrado do flagelo graças à intervenção de Nossa Senhora da Penha de França, o Senado da Câmara de Lisboa prometeu construir um grandioso templo, se ela livrasse a cidade da moléstia, o que fez em 1598.
Ainda hoje em tempos de pouca saúde a cidade de Lisboa lhe recorre.

A Igreja da Vista Alegre foi projectada para ser um grande santuário mariano em Aveiro, por voto do Bispo D. Manuel de Moura Manuel. Após termos ganho a independência ao domínio espanhol em 1640 e devido ao condicionamento da fronteira de peregrinação para o primitivo Santuário da Penha de França em Salamanca, D. Manuel de Moura Manuel, por especial devoção resolve dedicar à Virgem da Penha em Portugal, na sua quinta da Vista Alegre, este magnífico monumento, hoje monumento nacional e uma das mais belas igrejas do barroco inicial. Começando a sua construção em c. 1691 estaria já adiantada em 1694, data dos magníficos azulejos de Gabriel del Barco. Sabemos que a 15 de Julho de 1693, a arquitetura estaria terminada, instituindo-se no largo da Capela uma feira aos dias 13 que perdura nos dias da hoje.

Quem foi D. Manuel de Moura Manuel (1632-1699)?

D. Manuel de Moura Manuel nasce em Serpa em família nobre. Por parte do pai era neto de Dom Féliz de Gusmão que foi irmão de São Domingos e da parte da mãe descendente de D. Constança Manuel, rainha de Portugal que foi casada com o Sereníssimo Rei Dom Pedro I de Portugal e com o católico rei Dom Fernando de Castela e Leão.

Sendo o segundo filho, seu irmão Rui de Moura Manuel era senhor da Quinta da ermida em Ílhavo, tinha a opção de seguir dois caminhos: a carreira militar ou a carreira eclesiástica. Uma vez que o seu irmão Cristóvam era Frei, o seu tio D. Jorge de Melo era Bispo de Coimbra, por devoção, decidiu enveredar pelo caminho da religião católica.
Serviu nas guerras contra Espanha, antes denominada Castela, e foi conselheiro do Rei D. Pedro II. A sua formação foi na Universidade de Coimbra na qual se doutorou. A sua carreira de prestígio e logo após ter recebido o capelo da Universidade, 1659, foi provido a cónego de Lamego e Braga. Serviu a Inquisição durante 28 anos, em Évora como deputado, 1660, em Coimbra como inquisidor e presidente, 1666, tendo subido a Ministro do conselho geral da Inquisição no tribunal da corte de Lisboa e conselheiro do Sereníssimo Rei de Portugal, sendo depois reitor da Universidade de Coimbra, 1685, de onde saiu para assumir o bispado de Miranda do Douro, 1690. Em 1697 pede uma licença ao papa,não podendo fazer a visita ad limina por ter sido acometido de doença terrível que o pôs às portas da morte. Sabe-se que, para além do seu estado de saúde e o risco de viagens longínquas, haveria outra preocupação: a necessidade de dispor e assistir à fábrica de um sumptuosíssimo templo que, por voto, mandou fazer a Nossa Senhora sob a invocação da penha de França. Esta obra terá começado antes de assumir o bispado e com verbas vindas de bens patrimoniais e rendas de cargos anteriores a essa nomeação. Sabe-se também que D. Manuel tinha um gosto delicado por obras de arte que levou a que enriquecesse com o que de melhor existia no reino a magnífica Capela da Vista Alegre em Ílhavo (escultores, azulejadores, arquitetos, pintores - João Antunes, arquiteto regio, Claude Laprade, escultor , Gabriel del Barco (1648?-1706?), pintor)como confirma o estudo do Professor Ayres de Carvalho sobre estas encomendas de obras de grande valor artístico.

Como surgiu a devoção e culto de Nossa Senhora da Penha de França?
Simon Roland ou Simão Vale (1425/9 Maio 1434) era francês, nascido em Paris, filho de Rolan e Bárbara, nobres e ricos. Abandonou a riqueza e o conforto e dando tudo aos pobres e refugiou-se num mosteiro da Ordem Franciscana. Seu sobrenome Vela resultou de uma constante advertência, que lhe parecia ouvir do Céu: — "Simon, vela, e não durmas!", em suas prolongadas orações.
Recebendo, no convento, uma revelação mística da Virgem, esta lhe indicou que tinha que partir, em peregrinação, a fim de procurar a Penha de França.
— O que seria, onde estaria? — Em sua pátria?
Durante cinco anos, Simon andou, andou, inútilmente.
Avultavam, na Idade Média, as peregrinações ao túmulo do Apóstolo São Tiago, em Compostela. Seguiam o itinerário clássico da passagem pelo Santuário de Puy, tão famoso que se considerava sagrado o peregrino que o visitasse.
Com medalha de chumbo, de Nossa Senhora do Puy, servindo-lhe de salvo-conduto, Simon juntou-se a uma dessas romagens piedosas.
Acompanhou alguns peregrinos a Castela e a Salamanca, esperançoso de encontrar, entre os universitários, notícias da Penha de França. Mas, apesar de tão perto do lugar, permaneceu seis meses ainda, em buscas infrutíferas . Finalmente, uma tarde, meteu-se entre o povo, numa praça pública.
Ouviu um pastor referir-se à Penha de França, nome tão ansiosamente acalentado. Logo, empreendeu a caminhada para o sítio apontado. Difícil foi atingí-lo. Dias e dias, buscou, entre as fendas e grutas, o que desejava, até que, exausto, uma noite, foi surpreendido, pela fúria de uma tempestade,
no meio da qual se desprendeu uma pedra. Rolou, atingindo-o na cabeça e prostrando-o, desfalecido!
Na segunda noite, já, mais ou menos, refeito, em oração, ouviu a mesma voz que o acompanhava:
— Simon, vela y no duermas!
Repetia-se o aviso que o levou a trocar o nome de Rolan pelo de Vela. Na terceira noite, rezando, rezando sempre, percebeu extraordinário clarão, no meio do qual distinguiu uma cadeira tão adornada que parecia de ouro . Uma senhora formosíssima veio sentar-se ali. Trazia, nos braços, um menino encantador! Falou-lhe: — "Aqui, cavarás e o que achares deverás pôr no mais alto do monte, e uma casa farás. Tu a começarás e outros virão concluí-la. Estou satisfeita, meu filho."
Simon desceu a San Martin dei Castanar, onde encontrou cinco pastores, que se prontificaram a auxiliá-lo nas pesquisas. Após muito trabalho e muitos revezes, descobriram todos a desejada imagem da Virgem Maria, com o Menino Jesus, nos braços. Um dos pastores, escrivão, tudo anotou. Estavam em 19 de Maio de 1434.
Simon curvou a cabeça e tocou-a na imagem. Curou- se, imediatamente, da cicatriz que a pedra lhe fizera e que se agravara, com o frio e a falta de medicamento .
Conhecido o fato, organizaram-se romarias de preces
e construiu-se uma cabana, para abrigo do precioso achado, iniciador do Santuário da Virgem da Penha, na Espanha. Faleceu em 1437, cinco meses após o estabelecimento da Ordem Dominicana, com sete religiosos, na Penha de França. Quando exumado, o seu crânio apresentava ainda o sinal deixado pelo bloco de pedra.
O primitivo santuário da Virgem da Penha de França encontra-se na Província de Salamanca, numa linda e formosa região: “de La Sierra de Francia” (da Serra de França). Ali se contempla uma esplendorosa e singular paisagem que abrange a imensa planície castelhana, as montanhas das Hurdes e a Serra Estrela de Portugal.

O Património da Igreja da Vista Alegre:

A Capela de Nossa Senhora da Penha de França é um belo exemplo da arquitetura maneirista e do barroco. O seu altar-mor tem uma muito interessante representação do presépio e os tetos do espaço estão repletos de pinturas murais. O teto da capela-mor mostra-nos a Assunção da Virgem e o teto da nave da igreja a Árvore de Jessé. Na capela, destaque ainda para o conjunto de painéis de azulejos setecentistas de Gabriel del Barco, que representam cenas da vida da Virgem.
Esculpido em pedra de Ançã pelo escultor francês Claude Laprade, o túmulo monumental de D. Manuel de Moura Manuel e a representação da Virgem da fachada são de uma sensibilidade digna de se ver e denota um arrojo de modernidade para a época, os finais do século XVII.

Ao contrário das indicações do Vaticano, a estátua jacente do bispo não se encontra totalmente na horizontal com as mãos postas sobre o peito. Ao invés, a figura do bispo soergue-se do leito da morte e olha para a imagem da Nossa Senhora da Penha de França, a patrona da capela a quem era devoto. Com a mão direita a permitir o equilíbrio e a esquerda como que a começar um gesto a partir do peito, todo o movimento que a escultura imprime é de uma grande sensibilidade.

Ao avistar, no seu leito de morte, a Nossa Senhora da Penha de França, D. Manuel de Moura Manuel ergue-se para a santa e contempla a vida eterna, escapando assim aos braços da morte.

Todo o túmulo é de uma iconografia forte. Começa logo pelos dois leões de pedra que com dificuldade suportam o túmulo, indicando assim o peso da importância do defunto aqui sepultado. Ladeando o túmulo, surgem duas fénixes, em forma de carpideiras e, aos pés do leito da morte, um anjo que segura um crânio.

Sendo figura central do drama, a Nossa Senhora da Penha de França surge-nos em tamanho pequeno e descentrada, ao alto do lado direito de todo o conjunto monumental, para que o rosto de D. Manuel de Moura Manuel possa olhá-la de frente. A figura central é antes o tempo, apresentado como um velho, que está ladeado por dois anjos que levantam o véu da morte, permitindo assim ao bispo contemplar a vida eterna. No arco do conjunto estão esculpidas caveiras que ostentam chapéus representativos das mais elevadas classes sociais, numa clara mensagem de que não importa a importância que tenhamos em vivos, pois somos todos iguais perante a morte.

O túmulo de D. Manuel de Moura Manuel é uma obra-prima de rara sensibilidade e a mais importante peça da capela da Vista Alegre, assim conhecida por estar incluída no complexo do museu da bicentenária fábrica.

A Capela da Vista Alegre, em Ílhavo, Dia Internacional dos Monumentos e Sítios, comunicação dedicada à Nossa Senhora da Penha de França, por Hugo Calão, mestre em História e Património pela Universidade do Porto e sobre o escultor francês Claude Laprade por Sílvia Ferreira doutorada em Historia pela Universidade de Lisboa. 21-04-2018