In revista Flama de 9 de Fevereiro 1973
A religiosidade, o culto ao padroeiro, São Salvador, e o subsequente legado de arte sacra do concelho de Ílhavo, são a história continuada e a mais real prova da fé do povo e agregação social. A história da cidade não se escreveria, nem se conheceria, sem estes mil anos de registos documentados sobre a ação da Igreja em Ílhavo.
Nós, portugueses, manifestámos sempre grande predileção pelo nosso fiel amigo: o bacalhau, e, talvez, por via dele, iniciámos as amistosas relações diplomáticas com a nessa fiel aliada: a lnglaterra!
Com efeito, no meado do seculo XIV, as cidades de Lisboa e Porto celebraram, com Eduardo III de Inglaterra, o importante tratado de 20 de outubro de 1353, que estabelecia, durante cincoenta anos, o direito recíproco de pesca nas costas de Portugal, da Inglaterra e da Bretanha, que nessa epoca estava sob o domínio inglês. Ora, sendo o bacalhau uma espécie que se encontra em alguns pontos da costa ingleza, é possivel que já nessa epoca os portugueses se dedicassem à sua pesca nessas paragens, ao abrigo desse celebre tratado.
As trágicas viagens dos Corte Reaes, nos primeiros anos do seculo XVI, tiveram como consequência o descobrimento da Terra Nova dos Baralhacaus, como lhes chamam os documentos, em cujos bancos iniciámos desde logo as pescarias. D. Manuel, em 1506, por alvará de 14 de outubro, dirigido a Diogo Brandão, manda que este faça arrecadar para o Real Erário o dízimo do pescado da Terra Nova, que entrava pelos portos da província de Entre Douro e Minho. Em 1520, o mesmo rei faz a doação ao fidalgo minhoto João Alvares Fagundes dessas terras, e foi em virtude desta doação que, entre aquele ano e o de 1525, se estabeleceu na Terra Nova, com gente de Viana do Castelo, Aveiro e da Terceira, a celebre colónia do Cabo Brandão.
Desenvolve-se então extraordinariamente a pesca do bacalhau, havendo notícias de serem armados para ela grande numero de barcos nos portos de Viana e Aveiro. As guerras da rainha lsabel e dos holandeses contra a Espanha, em tempo de Filipe II, afugentaram os portugueses e espanhois dos bancos da Terra Nova, mas já em 1578, diz Packhurst, o número de navios portugueses que a ela se dedicavam não era superior ao dos navios ingleses, e, segundo o testemunho de Forster, em 1598, ainda lá mandavamos umas cincoenta embarcações.
No período da decadência, abandonámos por completo esta pescaria, sendo nela substituídos pelos ingleses e franceses, que por muito tempo debateram os seus direitos sobre ela em melindrosa e prolongada questão diplomática, a que só há poucos anos pôs termo o acordo de 8 de abril de 1904, uma das bases da entente cordiale entre as duas nações.
Só mais tarde, já no século XIX, a Companhia Lisbonense de Pescarias fez renascer, entre nós, esta indústria, chegando a obter bons proventos nos anos de 1841 e 1842. Segue-se novo período de decadência até que a Companhia liquidou em 1857. Deste ano até 1882 a exploração foi completamente nula: de 1883 a 86 fazem-se novas tentativas, armando-se alguns barcos, o máximo 14, nos portos de Lisboa, Porto, Viana e Açores.
Em agosto de 1885 levantataram-se dúvidas na alfandega de Lisboa sobre se ao bacalhau pescado por navios portugueses devia aplicar-se o imposto geral do pescado ou a taxa de 33,5 réis por kilo da pauta geral em vigor, chegando-se à conclusão, depois de muitas reclamações, como diz a célebre portaria de 14 de abril de 1886, que sobre o valor declarado do bacalhau pescado em tais condições fosse cobrado apenas o imposto do pescado, 6,6 % ad valorem e respetivos adicionais, ficando, porém, a pesca limitada aos navios que no ano de 1885 andassem empregados nela! E sendo esses navios apenas doze, a este número teve de restringir-se daí em diante a indústria portuguesa! Manteve-se este estado de coisas até 1901 em que, a instâncias da Associação Comercial de Lisboa, a quem a benemérita Liga Naval deu todo o seu patriótico apoio, o parlamento votou a lei de 12 de junho daquele ano, que sujeita ao imposto de 12 réis por kilo o bacalhau fresco, em salmoura ou simplesmente salgado, pescado por navios portugueses com tripulação completamcnte portuguesa: voltáramos ao regimen equalitativo da liberdade de pesca, acabando de vez com um monopólio odioso, mantido ao abrigo de uma simples portaria! Quais os benefícios efeitos de um tal regimen, eles são bem patentes nos ótimos resultados que acusa o extraordinario progresso desta indústria nos ultimos anos. As estatisticas de 1902 a 1910 mostram uma media geral de 18 embarcações que pescaram 3:724 toneladas, no valor de 223:556 contos de réis anualmente. Mas os resultados resaltam ainda com maior eloquência se examinarmos os progressos da indústria local na Figueira da Foz: em 1901-1902, três navios apenas pescaram 517:330 kilos de peixe com o valor de 41:386$000 réis, aumentando sempre progressivamente o numero de embarcações e o produto da pesca que, em 1911, empregou 13 navios que pescaram 2.120:263 kilos, com o valor de 212:026$300 réis, oferecendo uma ótima remuneração ao capital empregado. Em 1912, Portugal mandou á Terra Nova 34 navios, foi o maximo até hoje atingido. Tem, pois, esta industria sempre constantemente progredido, e conta um larguíssimo futuro, sendo, dentro em pouco tempo, uma das mais prosperas do nosso depauperado organismo económico. Os navios que se destinam á pesca do bacalhau largam, em geral, dos portos portugueses em principios de maio, singrando com rumo aos Açores, e, chegados á vista daquelas ilhas navegam então a oestenoroeste até ao grande banco, que está situado ao sueste da ilha da Terra Nova, á distância de umas 25 léguas, tendo mais de 200 leguas de comprimento por 60 de largo, com fundo desde 20 até 76 braças. O navio fundeia logo que chega ao banco e o prumo acusa fundo de 25 a 30 braças, mas o fundeadouro não é fixo, deslocando-se geralmente o barco do sul para o norte durante a temporada da pesca. Arreiam-se então os dóris, as embarcações de que se servem os pescadores: são pequenos barcos de construção americana, cujo comprimento varia entre 4 e 5 metros, o fundo é chato e fusiforme, a borda bastante inclinada para fora, a roda de proa e a popa com bastante caimento também para fora, sem bancadas fixas. Cada um destes barcos é tripulado por um homem que usa na pesca a linha de mão, e todos se espalham em torno do navio, fundeando á distância de meia até uma milha. Preparadas as linhas, o pescador larga-as uma para cada lado do dóri e espera, de pé, que o peixe pique. Logo que o barco está carregado regressa a bordo, começando geralmente a faina ás 5 horas da manhã, atracando ao navio cerca do meio dia, para voltar á uma hora para o mar, dando finalmente por concluído o trabalho da pesca ao pôr do sol. Segue-se depois a escala e salga do peixe, que usualmente se prolonga até ás 9 ou 10 horas da manhã, havendo, contudo, ocasiões em que só finda ás duas ou três horas da madrugada, em virtude da pesca ter sido abundante. Logo que chega setembro e o tempo arrefece, os navios, fugindo ao inverno, recolhem aos portos de partida, onde chegam geralmente de meados de outubro a meados de novembro. Faz-se entào em terra a secagem do peixe, em estabelecimentos com instalações próprias, preparando-o convenientemente para o consumo. A secagem do bacalhau é uma operação delicada porque é preciso evitar a chuva, e ela se realisa justamente durante a estação invernosa o peixe recolhe-se quase sempre á tardinha para ser exposto novamente de manhã. É labuta que se prolonga por muitos meses, devendo estar concluída em fins de fevereiro, porque em março a temperatura já é muito mais elevada, facilitando a decomposição do peixe. Depois de seco vai para os armazéns de comércio onde o consumidor o procura com o interesse de um verdadeiro apreciador, e, sendo a entrada media anual de bacalhau no nosso país de 21 milhões de kilos, se computarmos o numero de famílias portuguesas em um milhão, achamos que meio kilo de bacalhau pelo menos entra na alimentação de cada família em cada semana!
A. Mesquita de Figueiredo
in Hemeroteca Digital de Lisboa - Illustração Portugueza nº368 – 10 mar. 19013
Luar
de Setembro! Desperta-se em nós a saudade desse formoso rincão tão perto do mar,
minúsculo tapete bordado de infinita variedade de verdes, de claro, de escuro, de
prateado, da gramata da ria!
Estamos a 29 de Setembro, dia de São Miguel, anjo que entregou ao profeta Daniel o significado de visões que antecipavam coisas futuras. A história que vamos contar ouvimos de um casal com muita idade, que junto de nós estava (podia ser no Festival Cabelos Brancos), e que entreolhando-se, sorriram. Docemente a velhinha reclinou a cabeça de neve sobre o peito do companheiro e este começou:
No lugar da Légua não havia rapariga mais
linda do que a Luísa Bicuca, e no Casal não havia rapaz mais cantador e
reinadio do que o Joaquim Felpas. O Felpas gostava da Bicuca, mas a Bicuca não
gostava do Felpas. Num desafio, no dia da Senhora da Luz, o Felpas cantou-lhe:
Cantam nóras pelo campo
O verdemilho a regar,
Deu a seca na
minh'alma
Sem a luz do
teu olhar,
A Bicuca
respondeu-lhe :
Por mais voltas
que tu dês
Aos alcatruzes
da nóra
Hei de sempre
responder-te
- Não te quero, vai-te embora!
Tempos
decorreram. A Luísa Bicuca descera a lavar ao Rio da Páscoa, que lhe passava ao
fundo da propriedade. Tirando do dedo um anel de oiro, pousou-o sobre uma
pedra, e começou a lavar. Em dado momento quando a Bicuca estendia roupa sobre
um silvado, alguém que a espreitava, aproximou-se rastejando por entre um
milharal e guardou o anel, desaparecendo em seguida. Já meio-dia era passado
quando a Luísa Bicuca acabara de lavar o rol. Ao procurar o anel para enfiar no
dedo, o coração caíra-lhe aos pés. A linda prenda que a madrinha, quatro meses
antes, lhe havia comprado na Feira de Março, desaparecera. E lá foi, rio abaixo,
na meia curvatura de quem procura alguma coisa, não fosse o seu anel ter rolado
com a corrente das águas. Assim andou até que, passadas as horas de sesta, lá foi
para casa com o lindo olhar a embaciar-se-lhe de lágrimas, contando á mãe o
sucedido. O anel nunca aparecera e a Bicuca, dali em diante, começou de ficar tão
triste, tão triste e a perder o apetite, que em pouco tempo parecia desenterrada.
O seu olhar, dantes tão vivo e penetrante, tornou-se apagado
e fixo como o dum carneiro mal morto. Mas a ti Luísa Vigária, madrinha da
Bicuca, começou a ver naquilo arranjos de bruxedo.
— Nem que eu tenha de dar uma volta ao Inferno, hei de
desembaraçar esta meada!
Escura como breu estava aquela noite em que a Bicuca, mãe e
madrinha foram a Ílhavo consultar a bruxa que morava no Curtido. A Vigária,
como mais afoita, foi quem expôs à feiticeira os pontos mais salientes do caso
da afilhada.
— As cartas rezam tudo...— respondeu a bruxa.
Aninhadas todas as quatro á lareira, apenas alumiada pela
escassa luz da candeia que pendia do cambeiro, a sorte começou. Logo às
primeiras cartas se viu com grande clareza, pela perseguição que o conde fazia à
sota (o valete à dama), que andava envolvido naquilo um homem que, não podendo conquistar
ao bem o coração da Bicuca, procurava a todo o transe enfeitiçá-la!...
A espadilha, que veio logo depois, assim o confirmava! Era
portanto um caso muito bicudo e que merecia um grande cogitar. Como a
feiticeira precisava de ter conferências com o Diabo, prometeu uma resposta segura
para dali a oito dias, marcando a meia-noite para comparecerem e recomendando
um segredo absoluto. Na noite seguinte, em casa da mesma feiticeira, aparece um
homem todo embuçado que lhe pergunta logo à entrada:
— Então Ti Quitéria?... - E a bruxa com ar de quem tudo
descobriu:
— Adivinhei tudo, tudo! O anel que vossemecê achou, é duma bonita
cachopinha da Légua, chamada Luísa Bicuca.
Aquela revelação, assim de chofre, o homenzinho, que não era
outro senão o Felpas, ficou boquiaberto. E a bruxa, com um malicioso sorriso,
adivinhando as intenções do Felpas, acrescentou:
— E gosta muito dessa cachopinha?
— É verdade, Ti Quitéria, mas...
— Mas ela não gosta de si, foi por isso que vossemecê cá trouxe
o anel...
Tal adivinhar, fez ver ao Felpas o grande poder oculto
daquela mulher e mais se convenceu quando ela lhe perguntou:
— E até se lhe não dava de casar com ela?
— Ah! que se vossemecê arranjasse isso, pagava-lho bem pago!
— Talvez se arranje...
— Ó Tia Rita Quitéria, nem que eu tenha de vender a terra do Choiso! Arranje-me isso que lho pagarei bem pago!...
— Pois vá com a Nossa Senhora e venha cá sexta-feira, ao dar da
meia-noite.
Na torre da Igreja soam compassadamente as doze badaladas da
meia-noite. A essa hora triste, três vultos caminham por Espinheiro, em direção à casa da bruxa. Esta, de ouvido à escuta, logo que ouve passos no beco, abriu a
porta e as três criaturas entraram. Subjugadas pelos terrores secretos de quem
vai ouvir uma sentença terrível, esperavam a palavra da bruxa que, com um ar
cheio de mistério, lhes perguntou:
— Conhecem o Joaquim Felpas?
— Conhecemos, — respondem.
— Pois ele é que tem na mão a vida ou a morte desta menina!
— Jasus! Credo! – choramingou a Bicuca, lavada em lágrimas.
A bruxa continuou:
— O Felpas quer casar com ela. É o modo de a salvar.
Um grande silêncio abafado reinou durante alguns minutos, apenas
entrecortado pelos soluços da Luísa. A bruxa, toda despenteada, dava aquele
quadro tétrico, uma pavorosa e sombria cor.
— O anel desta pobre aqui veio ter por artes que só eu sei…
Vê-de bem! Ele vai-se desgastando do mesmo modo que ela vai mirrando, até
morrer! Enquanto o Felpas vivo for, ninguém terá o poder de lho tirar! Esse
anel tem estado enterrado no cemitério dentro dum púcaro novo. Esse púcaro tem
dentro um sapo macho, e na boca desse bicho, cosida com linha preta, é que o
anel tem estado. Aí o mando, para a boca do sapo, que o não posso ter mais
tempo em meu poder... — E a bruxa, atirando o anel para um buraco, ao canto do borralho,
concluiu com grande prepotência:
— De duas uma: ou casar com o Felpas, ou morrer!!!
Uma lufada de vento que desceu pela chaminé, apagou a
candeia! Estarrecidas de medo, as três mulherzinhas, desataram a gritar. Vizinhas,
em trajes menores, julgando que era fogo, saltaram para o meio do beco. Em
pouco tempo a rua de Espinheiro ficou em polvorosa. Esmiuçado o acontecimento, alguém
afirmava ter visto o Diabo em forma de cavalo, galopando rua abaixo...
Poucas semanas depois a Ti Luísa Vigária procurou o Felpas para
combinarem o casamento.
E o velho sorrindo e concluindo a história, disse-nos:
— O anel do feitiço é este que minha mulher tem no dedo.
— Então o sr. é…
— Eu sou o Joaquim Felpas e ela é a Luísa Bicuca.
E num transporte de candura, cingindo a companheira dos seus dias de encontro ao coração, disse:
— E creio que está para haver ainda casamento mais feliz, não
é verdade, Luísa? -
E a velhinha aconchegada toda ao peito do marido disse, chorando
de comoção:
— Abençoado feitiço!...
adaptado de João Teles, in jornal O Ilhavense, de 3 de Setembro de 1922.
Se à noitinha via uma estrela cadente cruzar no espaço, erguia-se com respeito e pronunciava sempre a frase protetora: — «Deus te guie!» porque na sua crença, era uma alma desgarrada que procurava aflita o caminho do céu.
Não raro, a dormir já, estremecia na cama e acordava a mulher, aterrado, trémulo de medo:
—Eh! Luiza! Luiza! — ouvira o galope desabrido dum lobisomem, lá fora. — Que seria?
Escuta, Luiza! Acho que é um lobisomem!
—Tem juízo home, tem juízo... — dizia-lhe a mulher e, quedo e aconchegado ao corpo da esposa, ficava atento, balbuciando rezas.
No entanto, na vida arriscada da pesca, ninguém o tinha na conta de cobarde. Duma feita na Costa Nova, trabalhando na companha do «Galo Velho», fora ele que enfrentara o escrivão que armado de varapau, crescera arrogante para mais de vinte homens que reclamavam quinhões atrasados. Atraída pela discussão azeda dos dois, toda a companha se juntou em volta, esperando entre risonhos e comovidos, numa ansiedade mal contida, o desfecho daquela altercação que devia de ser terrível. Ninguém dava nada pelo Bentevi que á vista do outro era um cinco reis de gente. O próprio escrivão virou-lhe as costas num gesto de desprezo, mas o Bentevi avançando sobre ele, disse:
— Nem és homem, nem és nada! Se me tocasses, até te roía os fígados!
Aquela ameaça, o escrivão virou-se de frente, encarou o seu contendor e sorridente, certo da vitória, derreou o corpo de flanco, levantou no ar o pau com pontaria á cabeça do Bentevi. Ouve um sussurro de aplauso entre os partidários do escrivão. Súbito, porem, um grito partiu, e o escrivão, abaixando-se com ambas as mãos no ventre, continha o sangue que jorrava de uma larga e profunda ferida. Acudiram todos, alguns com pena, outros com satisfação, aplaudindo o salto ágil do Bentevi que, livrando-se da paulada certeira do seu inimigo, lhe cravara no ventre a lâmina duma faca.
À meia noite, para lá da Barra da Vagueira, o Bentevi recebia das mãos da esposa umas moedas e uma medalhinha que ela lhe dependurou ao pescoço, lavada em lágrimas:
— Adeus, homem!
— Adeus, mulher! Para onde eu for, de lá te mandarei notícias! E partiu fugido para o Brasil.
Havia mais de um ano que o Bentevi vivia em Santos num sítio em que ele exercia a profissão da pesca. Que terríveis noites não passava o desgraçado, pungido pelo remorso, a ouvir sempre o grito agudíssimo que o escrivão largara quando a faca lhe entrou no ventre! Sentia ainda na mão a tepidez do sangue que jorrara, em gorgolões do ventre da sua vítima.
À noite, no rancho, depois que os camaradas recolhiam, as grandes sombras das árvores, ao pálido luar, tomavam formas espectrais que o amedrontavam. Figuravam-se-lhe braços ameaçadores, vultos embuçados que avançavam em passos subtis e parecia ouvir gritos, rumores de vozes ou lamentos doridos vindos do fundo da mata que negrejava para lá da casita.
— Que raio de vida esta, Senhor!... Perdoai-me Senhor Jesus, que eu já estou arrependido! E aquela mulher sem me responder, Senhor! Terá havido alguma desgraça?
Compungia-o a ideia de ter morto o escrivão. A mulher não lhe escrevera ainda, por isso não sabia se a sua vítima era deste mundo ou não. Uma tarde, em que ele viera a Santos, só pode regressar ao sitio, pela tarde da noite. Estava um esplêndido luar e a estrada do Cubatão, muito branca, insinuava-se pelo arvoredo e perdia-se nas sombras quietas. Era grande o silêncio e as sombras das árvores que se despejavam sobre a estrada, tornavam-na, por vezes, negra, mas logo adiante a lua reaparecia alumiando o caminho.
Ele caminhava a olhar o céu todo estrelado onde a lua brilhava. De repente, um grito silvou na mata. O Bentevi deteve o andar, olhando em roda. O luar cada vez mais brilhante, refletia na água quieta do rio que ladeava a estrada. Bentevi retomou o caminho, mas não havia dado dez passos quando, de novo, ecoou o mesmo, grito agudo que desta vez parecia proferir o nome dele: Bentevi! O pescador sentiu um arrepio de medo e ficou a olhar, mas tudo era mato e sombra, nem vivaalma, nem uma luzinha dum rancho! Uma voz interior parecia dizer-lhe que não prosseguisse, mas ele dando mais uns passos ouviu novamente o mesmo grito agudo: Bentevi!
Estremeceu violentamente. Persignou-se e ficou preso á terra, agarrado ao solo como aquelas árvores frondosas que pareciam esconder o assombro.
Uma ideia sinistra lhe veio aumentar o pavor. Seria um lobisomem? Seria a alma do escrivão? Levantou os olhos ao céu e uma estrela cadente riscou o espaço.
— «Deus te guie!
Seguidamente o mesmo grito lamentoso que parecia desferido por alguém que sofria: Bentevi!
Levou a mão à cinta e apertou a coronha da garrucha e, sacando-a para fora, levou-a à altura dos olhos e fez fogo ao acaso, Um grande estrondo ecoou no silêncio rolando trovejantemente. Bentevi!! Benteviii!!
Conjuntamente com estes gritos um ruflo de asas cortou o espaço sinistramente,
— Valha-me o Senhor Jesus de Ílhavo!
E com os dedos crispados, arrancou de sob o peito da camisa a medalhinha com a imagem do Senhor Jesus de Ílhavo que a mulher lhe pusera ao pescoço na noite da sua fuga. Segurando na mão fechada a pequenina medalha levantou ao ar o braço, como que a esconjurar o perigo e lá foi seguindo vagarosamente a estrada, ouvindo a voz ou ave agoirenta, pronunciar, já muito longe: Bentevi! Benteviiii!
Ao outro dia, dificilmente puderam convencer o pescador da existência nas matas brasileiras duma ave que canta pronunciando o seu verdadeiro nome: Bentevi!
In Invocações Marianas na Diocese de Aveiro, Pe. Domingos Rebelo, 1988
Calcário policromado
Capela da Costa Nova do Prado, Gafanha da Encarnação, século XVI (?)
66,5 alt x 24 larg cm
in jornal O Ilhavense, nº945, 1 janeiro 1933
Gafanha da Encarnação - Benção da Capela do Cemitério
Dia 9 de Dezembro último. A manhã sempre serena e linda, parecendo associar-se, com tristeza de outono, ao ato que ali vai ter lugar. Pelas 8 horas sai da igreja matriz a Irmandade da Senhora da Encarnação com o reverendo Prior da freguesia, dois seminaristas e muito povo no coice (um cortejo caminhando no comprimento de dois quilómetros). Entra-se no cemitério! Amplo e belo campo santo, bem situado, longe da povoação, em lugar pitoreseo e alegre, mais parecendo um jardim-dormitório do que uma necrópole; um excepcional campo sagrado, sem aquele pesado aspecto lúgubre, tristonho, da maior parte dos cemitérios do país. Abre-se a capela das encomendações, concluida há poucos dias. À direita, uma sacristia e à esquerda, uma sala para autópsias.
Na tribuna, um Cristo agonizante, de tristes olhos para o chão, bela imagem do Senhor dos Aflitos, parecendo pedir dali misericórdia para os defuntos que entram naquele silêncio-eternidade.
in jornal O Ilhavense, nº927, 21 agosto de 1932
Festas & Romarias: SENHORA DO CARMO
Hoje, festeja-se na Gafanha do Sul a imagem da Senhora do Carmo, a que assiste a Banda Bingre Canelensee a a Filarmónica Ilhavense. Como é o primeiro ano que se faz a festa, depois de construida a estrada daquele lugar, de esperar é que seja muito concorrida.
in jornal O Ilhavense, nº911, 1 de maio de 1932
Roubo importante:
Na sexta-feira passada, à tarde, quando o sr. Joaquim Rezende, lavrador, do lugar da Carvalheira andava no cultivo de uma terra com ontras pessoas de sua familia, os gatunos, que ainda se não sabe quem sejam, entraram-lhe em casa e roubaram-lhe 3.800$00 em dinheiro, um cordão de ouro, uma corrente e 4 ligas do mesmo metal e 4 resplendores de prata da imagem da Senhora do Rosário da Ermida, de cuja confraria o sr. Rezende é tesoureiro. A autoridade administrativa procede às investigações.