domingo, 16 de março de 2025

Amaro da Costa Nova do Prado

 As primeiras crianças da praia da Costa Nova que viram o vulto escuro e furtivo que se aproximava pelo mar pensaram que fosse um navio inimigo. Então viram que não tinha bandeiras ou mastros e pensaram que era uma baleia ou um boto. Mas quando se aproximou, arrastado para a praia, removeram os aglomerados de algas, os tentáculos de água-viva e os restos de peixes e destroços, e só então viram que era um homem afogado.

Brincaram com ele a tarde toda, enterrando-o na areia e desenterrando-o novamente, até que, alguém que por acaso os viu, espalhou o alarme pela duna. Os homens que o levaram para o palheiro mais próximo notaram que ele pesava mais do que qualquer morto que já tinham conhecido, quase tanto quanto um cavalo, e disseram uns aos outros que talvez ele tivesse flutuado por muito tempo e a água tivesse entrado em seus ossos. Quando o deitaram no chão, viram que ele era mais alto do que todos os outros homens, pois mal havia espaço suficiente para ele no pequeno compartimento de tabuado, mas pensaram que talvez a capacidade de continuar crescendo depois da morte fizesse parte da natureza de certos homens afogados. Tinha o cheiro do mar e apenas a sua forma dava a supor que era o cadáver de um ser humano, porque a pele estava coberta com uma crosta de lama e escamas.

Nem precisaram de lhe limpar o rosto para saber que o morto era um estranho. A praia era composta por apenas vinte e poucas casas riscadas de madeira que tinham pátios de bateiras e redes espalhadas na ponta da duna desértica. Havia tão pouca areia que as mães sempre andavam com medo de que o vento lhes levasse os seus filhos e os poucos mortos, que os anos causaram entre elas, ficassem a descoberto nas areias da capela ou fossem devolvidos pelo mar. Mas o mar estava calmo e abundante e todos os homens cabiam em sete barcos. Então, quando encontraram o homem afogado, simplesmente tiveram que olhar uns para os outros para ver que estavam todos lá.

Naquela noite, nenhum homem saiu para trabalhar no mar. Enquanto os homens foram descobrir se alguém estava desaparecido na vizinha Gafanha ou na Vila, as mulheres ficaram para trás para cuidar do homem afogado. Tiraram a lama com cotonetes de gramata, removeram as pedras submersas emaranhadas no seu cabelo e rasparam a crosta com as ferramentas usadas para descamar peixes. Enquanto faziam isso, notaram que a vegetação nele vinha de oceanos distantes e águas profundas e que as suas roupas estavam em farrapos, como se ele tivesse navegado por labirintos de corais. Notaram também que ele suportou a morte com orgulho, pois não tinha o olhar solitário de outros homens afogados que saíram do mar ou aquele olhar abatido e necessitado de homens que se afogaram em rios. Mas somente quando terminaram de limpá-lo é que perceberam o tipo de homem que ele era, o que as deixou sem fôlego. Ele não era apenas o homem mais alto, mais forte, mais viril e mais bem constituído que eles já tinham visto, mas, mesmo olhando para ele, não havia espaço para ele na sua imaginação.


Não conseguiram encontrar uma cama grande o suficiente para deitá-lo, nem havia uma mesa sólida o suficiente para usar no seu velório. As calças de férias dos homens mais altos não lhe serviriam, nem as camisas de domingo dos mais gordos, nem os sapatos daquele com os pés maiores. Fascinadas pelo seu tamanho enorme e pela sua beleza, as mulheres então decidiram fazer-lhe umas calças de um grande pedaço de vela e uma camisa de um pouco de linho brabante nupcial para que ele pudesse continuar na sua morte com dignidade. Enquanto costuravam, sentadas em círculo e olhando para o cadáver entre os pontos, pareceu-lhes que o vento nunca tinha sido tão constante nem o mar tão agitado como naquela noite e supuseram que a mudança tinha algo a ver com o homem morto. Elas pensaram que se aquele homem magnífico tivesse ali vivido na Costa Nova do Prado, a sua casa teria a porta mais larga, o teto mais alto e o piso mais forte, a sua cama teria sido feita de uma estrutura de barco xávega meia-lua mantida e unida por parafusos de ferro, e a sua esposa teria sido a mulher mais feliz. Achavam que ele teria tanta autoridade que poderia tirar peixes do mar simplesmente chamando pelos seus nomes e que ele teria colocado tanto trabalho de adubo de moliço na sua terra que a primavera teria brotado entre as bateiras dos pátios para que ele pudesse plantar flores e legumes nas areias. Compararam-no secretamente aos seus próprios homens, pensando que por toda a vida os delas eram incapazes de fazer o que ele podia fazer em uma noite, e acabaram descartando-os no fundo de seus corações como as criaturas mais fracas, mesquinhas e inúteis da Terra. Estavam vagueando por aquele labirinto de fantasia quando a mulher mais velha, que como a mais velha tinha olhado para o homem afogado com mais compaixão do que paixão, suspirou:


“Ele tem o rosto de alguém chamado Amaro.”


Era verdade. A maioria delas só precisou de olhar para ele outra vez para ver que não podia ter outro nome. As mais teimosas entre elas, que eram as mais jovens, ainda viveram algumas horas com a ilusão de que quando o vestissem e ele se deitasse entre as flores com sapatos de verniz seu nome poderia ser Salvador, como o santo da Vila. Mas era uma ilusão vã. Não havia lona suficiente, as calças mal cortadas e mal costuradas estavam muito apertadas, e a força oculta de seu coração estourou os botões de sua camisa. Depois da meia-noite, o assobio do vento diminuiu e o mar caiu em sua sonolência de quarta-feira. O silêncio pôs fim a qualquer última dúvida: ele era Amaro. As mulheres que o vestiram, que o pentearam, que cortaram suas unhas e o barbearam não conseguiram conter um estremecimento de pena quando tiveram que se resignar a que o arrastassem pelo chão. Foi então que compreenderam o quão infeliz ele devia ser com aquele corpo enorme, pois o incomodava mesmo depois de morto. Podiam vê-lo em vida, condenado a atravessar portas de lado, a bater a cabeça nas traves, a ficar de pé durante as visitas, sem saber o que fazer com as mãos macias, rosadas, de leão-marinho, enquanto a dona da casa procurava a sua cadeira mais resistente e lhe pedia, morta de medo - 'Senta-te aqui, Amaro, por favor!'- e ele, encostado à parede, sorrindo, - 'Não se incomode, senhora, estou bem onde estou!'- com os calcanhares em carne viva e as costas assadas de ter feito a mesma coisa tantas vezes sempre que ia visitá-la, (não se incomode, senhora, estou bem onde estou), só para não passar pelo constrangimento de partir a cadeira, e ainda nunca saber quem lhe dissesse - 'Não vás, Amaro, pelo menos espera até o café ficar pronto!'- imaginando-se mais tarde a sussurrar - 'Finalmente foi-se embora, que bonito, o bonito do idiota foi-se embora!'. Era o que pensavam as mulheres ao lado do corpo um pouco antes do amanhecer. Mais tarde, quando lhe cobriram o rosto com um lenço para que a luz não o incomodasse, ele parecia tão morto para sempre, tão indefeso, tão parecido com os seus homens que os primeiros sulcos de lágrimas se abriram nos seus corações. Foi uma das mais novas que começou a chorar. As outras, voltando a si, passaram dos suspiros aos lamentos, e quanto mais soluçavam mais sentiam vontade de chorar, porque o afogado estava a tornar-se cada vez mais Amaro para elas, e por isso choraram tanto, pois era o homem mais destituído, mais pacífico e mais prestativo da terra, o pobre Amaro. Então, quando os homens regressaram com a notícia de que o afogado também não era nem das Gafanhas, Ílhavo ou Vagos, as mulheres sentiram uma abertura de júbilo no meio das suas lágrimas.


“Louvado seja o Senhor”, suspiraram elas, “ele é nosso!”


Os homens achavam que o alvoroço era apenas frivolidade feminina. Cansados ​​pelas difíceis investigações noturnas e das viagens de bateira pela ria, só se queriam livrar de uma vez do incómodo recém-chegado antes que o sol crescesse forte naquele dia árido e sem vento. Improvisaram uma liteira com os restos de mastros e gáveas, amarrando-a com cordames para que suportasse o peso do corpo até à borda, e chegarem ao meio da Cale de Mira. Queriam amarrar-lhe a âncora de um cargueiro, que ali havia naufragado há uns anos, para que se afundasse facilmente nas ondas mais fundas do lodo, onde os peixes são cegos pelos caranguejos e os mergulhadores de crico morrem, e as más correntes não o trouxessem de volta à praia, como acontecera já com outros corpos. Mas quanto mais se apressavam, mais as mulheres pensavam em maneiras de perder tempo. Andavam como galinhas assustadas, bicando com os amuletos do mar no peito, algumas interferindo de um lado para colocar um escapulário do Senhor Jesus no afogado, outras do outro lado para lhe colocar uma bússola de pulso. Depois de muito alvoroço - 'Arre, mulher, fica-me longe do caminho!! Vossemecê quase me fez cair em cima do morto! - os homens começaram a sentir desconfiança nos fígados e começaram a resmungar sobre o porquê de tantas decorações de altar-mor para um estranho, porque não importava quantos pregos e jarros de água benta ele tivesse consigo, os caranguejos o mastigariam do mesmo jeito. Mas as mulheres continuavam empilhando as suas relíquias de lixo, correndo de um lado para o outro, tropeçando, enquanto soltavam em suspiros o que não soltavam em lágrimas, de modo que os homens finalmente explodiram - 'Desde quando houve tanto alarido por um cadáver à deriva, um ninguém afogado, um pedaço de carne fria de quarta-feira'. Uma das mulheres, mortificada com tanta falta de cuidado, então retirou o lenço do rosto do morto e os homens também ficaram sem fôlego.


Era Amaro. Não era preciso repetir para que o reconhecessem. Se elas tivessem dito que era o Pirata das Caraíbas, eles até poderiam ter ficado impressionados, com seu sotaque à gringo, a arara no ombro, o seu bacamarte matador de canibais, mas só podia haver um Amaro no mundo. E lá estava ele, esticado como um cachalote, descalço, usando calças de criança pequena e com aquelas unhas de pedra que tinham que ser cortadas com uma faca. Bastava tirar-lhe o lenço do rosto para se ver que estava envergonhado, que não tinha culpa de ser tão grande, nem tão pesado, nem tão bonito, e se soubesse que isto ia acontecer, teria procurado um lugar mais discreto para se afogar e dizer do além - ' Vês! Até eu teria amarrado a âncora de um galeão no meu pescoço e me atirado pró lodo, como quem não gosta das coisas, só para não estar a incomodar agora com este cadáver de quarta-feira, como vocês dizem, para não incomodar ninguém com este pedaço de carne fria e imundo que não tem nada a ver comigo'. Havia tanta verdade no seu jeito que até os homens mais desconfiados, os que sentiam a amargura das noites intermináveis ​​no mar temendo que suas mulheres se cansassem de sonhar com eles e começassem a sonhar com afogados, até eles e outros mais duros estremeceram na medula dos ossos diante da sinceridade da visão de Amaro.


Foi assim que realizaram o funeral mais esplêndido que puderam conceber para um homem afogado abandonado. Algumas mulheres que tinham ido buscar flores à Gafanha e a Vagos voltaram com outras mulheres que não conseguiam acreditar no que lhes tinham dito, e essas mulheres voltaram para buscar mais flores quando viram o homem morto, e trouxeram mais e mais até que havia tantas flores e tantas pessoas que era difícil andar pelo areal. No momento final, doeu-lhes devolvê-lo às águas do mar como um órfão e escolheram um pai e uma mãe entre as melhores pessoas, e tias e tios e primos, para que através dele todos os habitantes da praia da Costa Nova se tornassem parentes. Alguns marinheiros, salineiros e moliceiros que ouviram o choro à distância desviaram-se do curso e as pessoas ouviram falar de um que se amarrou ao mastro principal, lembrando-se de antigas fábulas sobre sereias. Enquanto lutavam pelo privilégio de carregá-lo nos ombros pela escarpa íngreme da duna, homens e mulheres tomaram consciência pela primeira vez da desolação da rua de palheiros, da secura de seus pátios, da estreiteza dos seus sonhos diante do esplendor e da beleza do homem afogado. Deixaram-no ir sem âncora para que ele pudesse voltar se quisesse e quando quisesse, e todos prenderam a respiração pela fração de séculos que o corpo levou para cair no abismo do mar. Não precisaram olhar uns para os outros para perceber que não estavam mais todos presentes, que nunca estariam. Mas também sabiam que tudo seria diferente dali em diante, que suas casas teriam portas mais largas, tetos mais altos e pisos mais resistentes para que a lembrança de Amaro pudesse ir a todos os lugares sem esbarrar nas vigas e para que ninguém no futuro ousasse sussurrar que o grande idiota finalmente morreu, que pena, o bobo bonito finalmente morreu. Iam pintar as fachadas das suas casas de cores alegres com riscas brancas para eternizar a lembrança de Amaro. Iam quebrar as costas cavando moliço entre as areias, plantando flores e açucenas para que nos anos futuros, ao amanhecer, os passageiros dos grandes transatlânticos e turistas acordassem, sufocados pelo cheiro dos jardins em alto mar, e o capitão tivesse que descer da ponte com seu uniforme de gala, com seu astrolábio, e a sua fileira de medalhas de guerra e, apontando para o promontório de riscas coloridas no horizonte, pudesse dizer em quatorze línguas - 'Olhem ali, onde o vento está sempre constante, ali, onde o sol está tão brilhante que as açucenas nem sabem para onde se virar, sim, ali, é a Costa Nova do Prado, com Santo Amaro na Capela.'


FIM


(Hugo Calão, 2025 © - adaptado de Gabriel García Márquez - O afogado mais lindo do mundo, 1968)

nota: A festa de Santo Amaro da praia da Costa Nova do Prado em Ílhavo é celebrada no dia 21 de Janeiro, com procissão na duna de areia até ao mar e bênção dos pescadores.